Brotado logo no início do ano de 2023, o recente episódio de um rombo nas tradicionais Lojas Americanas de R$ 20 bilhões tornou-se a notícia mais impactante no mundo corporativo e financeiro. Confesso que, quando li essa cifra, pensei de início em erro de leitura, mas busquei outras fontes e certifiquei-me do estrondo.
Ao considerar um país com dificuldades financeiras e materiais de grande parte da população, R$ 20 bilhões em uma única empresa é algo muito sério e requer atenção, merecendo esse tema ser analisado com seriedade pelas autoridades responsáveis no Brasil. Dependurados aí estão 140 mil acionistas em sua base, que respiram um prejuízo macabro com a queda das ações de até 80%.
As Lojas Americanas integram a história do comércio varejista brasileiro, com início em 1929, fundada por quatro norte-americanos em viagem para Buenos Aires. No caminho, descobrem o potencial inexplorado para um comércio varejista no Brasil e decidem, então, aportar na cidade do Rio de Janeiro e abrir uma loja de bugigangas ou de quinquilharias variadas.
Em 1940, abrem capital e tornam-se uma sociedade anônima. Pode-se dizer que, em 1982, as Lojas Americanas passam para as mãos de investidores “valentes”, por meio do Grupo Garantia. Nele se encontravam os atuais homens mais ricos do país, Jorge Paulo Lemann e seus sócios, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.
A partir de 1999, a varejista entra no e-commerce e, nos últimos 15 anos, adquiriu 28 empresas e, assim, ampliou seu portifólio de produtos. Em 2022, as Lojas Americanas atingiram o quinto lugar no ranking do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo (Ibevar), apresentando um faturamento anual de R$ 32,2 bilhões.
Então, o que teria abalado uma holding aparentemente bem estabelecida no mercado, dispondo de uma saúde bastante estável para atrair investidores em ações da Bovespa (B3)? Partiria de explicações relacionadas com o processo de financeirização do capitalismo mundial atual. As Lojas Americanas criaram uma imagem de oportunidade de negócios para investidores e, nesse espectro, investiram em governança e auditorias, nos moldes de exigências do mercado acionário, incluindo um programa de compliance, isto é, de gestão, o qual está pautado em ética e transparência, procedimento adotado por grandes empresas.
No entanto, as medidas de governança na varejista não evitaram as inconsistências contábeis, responsáveis por inflarem o lucro nos anos anteriores. Diante do exposto, a grave situação aproxima-se de fraude contábil. Essa contabilidade “criativa”, em poucas palavras, significa manipular a realidade patrimonial de uma organização com o intuito de obter investimentos de terceiros ou financiamentos do sistema financeiro.
O ex-CEO das Lojas Americanas, Sérgio Rial, em sua curta passagem pela varejista, relatou como era contabilizado o pagamento de fornecedores via bancos. Trata-se do conhecido “risco sacado”, que consiste em uma transação na qual uma empresa compradora, denominada “empresa âncora”, contrata uma instituição financeira (Banco) e monta uma operação de antecipação de pagamento a seus fornecedores.
De acordo com Rial, as Lojas Americanas não registravam essas operações da forma correta, distorcendo o tamanho da dívida que alcançou, então, os R$ 20 bilhões. Com isso, a varejista não deve nem a bancos nem a fornecedores. Ao não realizar essa separação, deixa de ser uma conta “Fornecedor” clássica no balanço, o que dificulta as auditorias. E se é dívida, onde estaria reportado o custo financeiro?, questionou Rial.
Vale destacar que as Lojas Americanas passaram por auditagem realizada por uma das empresas mais conceituadas no setor, a PricewaterhouseCoopers (PwC) do Brasil, considerada uma das “big four”, ao lado da KPMG, Ernest&Young e Deloitte, compondo o quadro das quatro maiores empresas contábeis do mundo. A auditoria aprovou balanços da empresa sem ressalvas e ainda sem qualquer referência às operações de “risco sacado” nas demonstrações financeiras referentes aos anos de 2021 e 2022, que causaram o rombo bilionário.
Algo pode ter ocorrido nessa “massaroca” contábil que até mesmo a mais competente empresa de auditoria não encontraria as inconsistências. Será mesmo?!
* Ycarim Melgaço
Doutor em Geografia, Pós-Doc em Economia e em Administração de Organizações
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