Opinião

Apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos...

Certa vez, quando o conceito de Representatividade ainda nem fazia sucesso nestas terras, fui cumprir com o ritual matutino de todos os sábados: me levei para tomar uma cerveja antes do almoço, pra ficar pensando melhor. Na mesa ao lado da minha, duas mulheres negras conversavam em um tom de voz harmonioso, que foi ficando inflamado ao longo da prosa: 

“Você reclama de barriga cheia, mana. Lá atrás, no começo do anos 2000, nenhuma de nós tinha o espaço e o status que hoje você tem. Pensa nas novelas, mana, nas personagens negras das novelas... todas vestiam uniforme e passavam a trama inteira com uma bandeja na mão. Hoje não, hoje somos protagonistas. Muita coisa mudou, olha pra você, você é capa de revista, tem mais de 10k seguidores, é disputada pelos jornalistas e até o que você come vira tendência, se toca vai”. 

Mulher negra fotografada por Seydou Keita
Crédito: Seydou Keita

“Irmã, presta atenção, não é sobre o que eu conquistei com a minha carreira, é sobre eu ser uma artista conceituada aqui dentro e lá fora, e, nem depois disso tudo, eu ser vista como Humana.”

“Como assim, criatura? Olha, eu acho que cê tá entrando demais nessas ondas do povo da faculdade. O que a nossa gente quer é pagar o aluguel direitinho, ter comida na mesa e algum dinheiro pra tomar umas cachaças no final de semana, e você foi muito além disso.”

“Jamila, de que adianta eu ser paparicada por seguidores e apreciadores da minha arte, se quando eu estou fora dessas bolhas, seja dentro do avião, no restaurante ou em um hotel, as pessoas ainda me enxergam como um corpo fora do lugar?”

“Uai, como assim um corpo fora do lugar?”

“É, eu te contei que na semana passada, enquanto eu esperava o elevador pra subir pro apê, um tiozão se aproximou de mim com aquele olhar de “quero te comer” e perguntou se eu morava ou trabalhava no condomínio? Irmã, o grande drama do nosso povo não é a escassez de recursos. O grande drama do nosso povo é o reconhecimento de nós como pessoa. Nunca somos vistas como a Mulher, os homens nunca são vistos como Homens, as crianças nunca são vistas como Crianças. Somos vistos como servas e servos, esse tiozão escroto, por exemplo, ele não enxergou em mim uma Mulher, mas um corpo para servi-lo em suas necessidades sexuais. A nossa condição de humana nunca foi reconhecida no Brasil.”  

“Acho que estou começando a te entender, você quer dizer que mesmo com todo o dinheiro e o status que você conquistou, a cor da sua pele, ainda te impede de ter dignidade?” 

“Exato. É que são 500 anos de Brasil, Irmã. E dentro desses 500 anos, foram 300 anos de escravização. Trezentos anos significa, por exemplo, eu que tenho 30 anos, viver a minha vida dez vezes. E nesse período, a escravização plantou na mente da sociedade a ideia de que a Mulher preta ou é a "mulata hipersexualizada" ou a "mãe preta" ou a "criada", atualmente a "doméstica". E eu tô cansada dessa mentalidade escravocrata, parece que tudo muda, e nada muda, caramba”. 

“Êta lelê, agora até eu fiquei aqui pensativa com meus botões. Mas, toma, enche o seu copo com essa cerveja que tá geladíssima e se permita descansar, porque descanso também é luta.”

Depois desse diálogo, eu fiquei com a impressão de que aqueles quinze minutos no bar me ensinou muito mais sobre a minha História e a História do Brasil, do que muitas aulas de História da Universidade.

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