Coluna

THE LAST WISH - Parte I

Um conto de E. Palmer

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Já era quase meio-dia e o homem ainda estava deitado na cama.

A claridade invadiu o quarto. Lá fora, o sol estava mais dourado, baixando acima das montanhas. A sombra da casa estirava-se por todo o gramado, até o pequeno portão de madeira. Além dele, a caixa de correio com o nome dos Caines, ardia no sol.

O homem é Alex Caine um escritor de obituários, alcoólatra e genial que não leva a vida muito a sério, vive sem se importar com ela ou com a necessidade de pertencer ao sistema ou a uma sociedade qualquer.

Um homem com uma vida quase perfeita que é surpreendido com a perda do trabalho e a morte de sua esposa, Sarah.

De acordo com o texto anotado na orelha do romance “The Last Whish”, ao lado da cama, tem 50 anos, é escritor, casado com a também escritora Sarah Caine e autor de dois livros.

A ausência da mulher o machucava. Aqueles pensamentos. Aquelas recordações. Por que sua mente os trazia de volta agora? Alex se sentia como se estivesse preso a um sonho do qual não queria sair.

Os pensamentos de Alex são interrompidos por um cão da raça labrador que subiu na cama, rosnou e lambeu seu rosto, acordando-o. Era a hora do almoço. Alex se espreguiçou fazendo um barulho rouco que foi de pronto imitado pelo cão.

A cozinha ficava na parte baixa da casa. O cão desceu as escadas correndo acompanhado de perto pelo dono. Quando Alex entrou na cozinha o animal latia em frente a despensa onde Alex guarda a ração. Alex fez um carinho na cabeça do cão, antes de encher uma vasilha azul, onde se lia, em vermelho: Buck. Um pouco da ração espalhou-se pelo chão da cozinha. Buck olhou para Alex com um provável ar de reprovação. Ainda estou um pouco sem jeito, mas agora temos que nos virar sozinhos, disse para si mesmo, mas encarando o olhar do cachorro. Enquanto o cachorro comia, ele ligou a cafeteira. O barulho do café coando e o cheiro forte invadiu a cozinha, naquela manhã fria. Cruzou a cozinha banhada de sol, calçando suas surradas pantufas de coelhinhos. Pegou a caneca encheu-a com o café fumegante e subiu para o escritório.

Invariavelmente, o dia do escritor começa sempre assim. Alex passa os dias e as noites bebendo, ouvindo jazz no rádio e, no resto do tempo, escrevendo sobre pessoas que morreram e de quem ele jamais ouviu falar. A morte sempre lhe foi muito próxima e cara. Perdeu o pai e a mãe ainda criança e a mulher, de uma doença terminal, que o fez mergulhar na bebida. Alex já tentou abandonar o álcool, assim como fez com o cigarro, mas a bebida não parece disposta a abandoná-lo, sem luta.

A casa - uma construção antiga com o pé direito alto - estava fria e silenciosa. Os únicos sons eram o estalar discreto das teclas do computador e o chiado baixinho do vento frio do inverno lá fora. Alex só tem como companhia Buck, o cachorro de sua mulher, seu melhor amigo e o principal motivo para continuar vivendo. Ele adora cães. Sempre adorou. Quando era criança ele tinha um cãozinho chamado Bart. Era seu melhor amigo. Foi um presente de sua mãe, mas ele pegou uma doença emocional e morreu, logo depois de sua mãe.

A solidão se tornou um estilo de vida ou, antes, um vício mórbido: ele se acostumou a se alimentar dessa tristeza e se sente confortável vivendo assim. Todas as noites, depois do trabalho, ele frequenta o bar do Joe, onde ele conheceu Sarah. Joe é um velho amigo que está sempre disposto a ouvir suas lamentações.

Naquela tarde, ele estava sentado em sua poltrona de leitura lendo pela milésima vez a carta que Sarah escreveu para ele, antes de morrer. Ele às vezes chora e fala do vazio da casa, da saudade eterna, de envelhecer sozinho, do pavor de ver a quem se ama definhar, enquanto lê. Alex só encontrou a carta uma semana depois do sepultamento da esposa. Era uma carta longa e amorosa. Sarah sabia o quanto Alex era negligente, excessivamente desligado e dependente dela. A carta era basicamente um manual de como sobreviver sem ela. “Não esqueça, a lasanha deve ficar quinze minutos no microondas. A ração do Buck é com vegetais e não carne. E não esqueça de botar o lixo pra fora às segundas, quartas e sextas…”

Mesmo com a saúde abalada e sabendo que tinha pouco tempo de vida Sarah, ainda assim se preocupava mais com Alex que com ela mesma. Falava do trabalho dele e de como admirava seu talento com as palavras. Elogiava os contos e novelas que escrevia. Sabia o quanto ele estava triste com a demissão do jornal onde trabalhou por mais de trinta anos e por estar sobrevivendo escrevendo obituários num pequeno jornal local - o que significava quatro mil dólares anuais a menos, mas era um emprego. Ela disse a Alex que eles tinham sorte. Ele concordou. Com o fechamento dos jornais impressos, havia muitos jornalistas desempregados.

Na carta, Sarah só fazia um pedido. Um simples pedido: “Querido, não fique triste por estar escrevendo obituários. Continue escrevendo seus contos e novelas, eles são lindos. Mas, até seus obituários são delicados e comoventes. Continue a escrevê-los. Eles são um alento para as famílias dos que se foram e, estejam onde estiverem, estão gratos a você por não deixá-los ir sem uma palavra de carinho. Tudo o que você faz é lindo, quero que escreva o meu. Sua, Sarah.”

A carta, escrita em letra cursiva, estava manchada pelas lágrimas de Alex e amarrotada devido aos constantes manuseio. Leu mais uma vez o que dizia, e a única coisa de que se deu conta foi de que não atendeu o último desejo da esposa. Aquilo o machucava muito. Ela cuidara tanto dele e ele não fora capaz de atender um único e simples pedido dela. Seu último desejo. Mas ele sabia que ela era generosa demais para condená-lo por isso. O funeral foi no início da primavera quando os girassóis começavam a florir. Somente uma semana depois ele encontrou a carta. O envelope caiu por uma fenda na gaveta do criado mudo e ele só o encontrou, sob a cama, dias depois. E não tinha nada mais que pudesse fazer, nem ninguém para quem pudesse contar. Algo como aquela carta é pessoal demais para ser contado a qualquer um, exceto uma mulher ou um amigo muito íntimo. E ele não tinha feito muitos amigos íntimos ao longo dos últimos anos. Pensou no Joe, seu amigo, dono do bar.

Alex é uma pessoa solitária e gosta da solidão. A vida de escritor é solitária. Ele passa a maior parte do seu tempo dentro de casa, trancado em seu escritório. No escritório, havia duas poltronas de espaldar alto. Havia também uma mesa grande com uma luminária dourada e verde onde Alex trabalha. Um quadro com girassóis ficava na parede atrás da mesa. Havia muitos quadros nas paredes, mas o preferido de Alex ficava em cima de sua mesa. Era uma fotografia em preto e branco da esposa com Buck. Sarah Caine era uma mulher de estatura mediana e magra, de cabelos claros, pele muito branca e olhos tão verdes que pareciam folhas molhadas de chuva de um anoitecer outonal. Numa mesinha de pinho, havia um abajur e uma pilha de livros. A direita, uma porta de vidro levava ao banheiro. O banheiro tinha piso de cerâmica antiderrapante branco e uma banheira com pés de garra. Manchas de ferrugem salpicavam a porcelana embaixo do chuveiro. A banheira era agradavelmente limpa e tinha a aparência de pouco uso.

Alex estava no escritório, ouvindo Billie Holiday cantar “I´m a Foot to Want You", em seu velho rádio RCA que Alex chamava de “som”, ou, se estivesse de bom humor, de “somzão”.

Ele gosta de ficar em casa vendo TV. Em especial as sitcoms e o noticiário da CNN. E, quando não está escrevendo, lê os livros que, por falta de tempo, nunca leu. Sente falta da esposa mas, apesar da dor constante, sua vida é quase normal. A melhor parte de seus dias - assumindo que não estivesse chovendo ou fazendo muito frio - são as idas ao seu bar preferido, todas as noites, depois do trabalho. Quase nunca sai de casa. A não ser para as visitas frequentes ao “Joe's”.

A morte é o seu ofício. Apesar da proximidade com ela, no trabalho e na vida, a morte o amedronta. Hipocondríaco, ele tinha motivo suficiente para fugir dela como o diabo da cruz. Mas, em vez disso, ele passa a maior parte do seu tempo no computador, na companhia do medo. Sentado confortavelmente no escritório de casa, usando um suéter surrado, uma calça de pijama rasgada na altura do joelho e pantufas de coelhinhos, com olhos negros que se mexem conforme ele se movimenta. O coelho do pé esquerdo perdeu um dos olhos. Mas ele não pensa em se livrar delas. Ao contrário, adora elas, foi presente da mulher.

Alex para com frequência para tomar longos goles de vinho e, vez ou outra, trocar a estação do velho rádio. As teclas do computador “tocam” uma canção dolente, enquanto Alex digita um poema do padre Henry Scott Holland, no obituário de um “cliente”, que diz:

“A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo.

Me dêem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.

Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.

Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.

A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.

Porque eu estaria fora de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?

Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho...

Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi.”  

Ediel Ribeiro (RJ)

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Coluna do Ediel

Ediel Ribeiro é carioca. Jornalista, cartunista e escritor. Co-autor (junto com Sheila Ferreira) do romance "Sonhos são Azuis". É colunista dos jornais O Dia (RJ) e O Folha de Minas (MG). Autor da tira de humor ácido "Patty & Fatty" publicadas nos jornais "Expresso" (RJ) e "O Municipal" (RJ) e Editor dos jornais de humor "Cartoon" e "Hic!". O autor mora atualmente no Rio de Janeiro, entre um bar e outro.

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