Colunas

O QUE NOSSOS OLHOS VEEM

Foto: Marina Vitale | Unsplash. 

Juiz de Fora (MG) – Algumas coisas que nossos olhos veem nos enchem de vergonha. Diz-se que fechar os olhos para as coisas más, adversas e perversas trata-se de um eufemismo, porque, na verdade, nossos olhos estão bem abertos e fingem não ver, apesar de olhar, com desprezo, indiferença ou letargia.

Se nossos olhos sentem, somente uma lágrima ou duas podem dizer isso. Nossos olhos choram enquanto a atitude do corpo, o uso da fala, o nosso ouvir permanecem surdos, calados e não tomamos sequer um aceno de mão para negar o que vemos.

Nossos olhos podem ver a injustiça diante de nós, e permanecemos indiferentes porque aceitamos, sabemos lá por quê. Caminhamos pelas ruas, olhamos adiante, e nem sequer baixamos os olhos para ver aqueles que jazem nas calçadas com as mãos estendidas e com seus olhos, que também veem, vendo-nos enxergar e ignorar.

Somos maus por ter esse comportamento? Essa indiferença diante dos outros?

Quando olhamos para o passado e lembramos da escravidão, sob o olhar complacente da igreja, criticamos nossos antepassados por que fizeram isso com os semelhantes, apenas diferentes pela cor da pele. Atribuímos isso a uma cultura da época, patrocinada, sim, por interesses os mais escusos. Nosso olhar, naquele tempo, enxergava apenas o interesse e aceitava tudo porque tudo era aceito assim.

Criticamos nossos antepassados por isso.

No entanto, se imaginarmos que alguém vindo de um futuro longínquo nos visitasse, também nos perguntaria, quem sabe, por que permitiríamos que pessoas seguissem abandonadas pelas ruas? Sendo que, supostamente, no futuro, esse dilema tenha sido resolvido. Diríamos, talvez, que a cultura é assim, e que a solução é muito complicada, que as pessoas são complicadas.

Mas nosso olhar não enxerga que os processos de exclusão no passado se perpetuam até hoje, pelo racismo e pelo preconceito. No futuro, esses excluídos de hoje não passarão a ser vistos da mesma forma encoberta como hoje?

Nossos olhos são mais do que ver e enxergar o que nos cerca. Nosso olhar é conivente com tudo de indiferença que nos rodeia. Nosso olhar é cúmplice e, certamente, a morada da nossa vergonha. Que paradoxo nosso olhar, nossa janela da alma, que se abre para fora e não para trazer luz para nosso interior, mas para continuar a enxergar e a não ver, a ver e se omitir. Nosso olhar iluminado não nos ilumina por dentro. Apenas é uma grande janela que se abre quando algo nos interessa e se fecha quando o que o olhar que vê não enxerga. É como uma cortina transparente que tenta esconder o mundo exterior a nós.

Sentimos vergonha, porque o olhar vê e abriga o mundo abjeto que enxergamos. Nosso olhar vai muito mais além da indiferença. Nosso olhar é cego e a janela da nossa alma é indiscreta e se concreta na frigidez onde o brilho se transforma.

Nilson Lattari

391 Posts

Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

Comentários