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DESMILINGUIR

Foto: Magda Smolen | Unsplash. 

Eu tenho um certo carinho pela palavra. Ela tem a sonorização da própria coisa se desfazendo. Parece que nós podemos imaginar o objeto, a pessoa, o personagem se desfazendo diante de nós.

Me sinto desmilinguir todas as vezes que vejo nas redes sociais os raciocínios absurdos, ditos por pessoas que ostentam cargos e títulos, eivados de lauréis. Fico imaginando o que está acontecendo com o conhecimento. Um suposto conhecimento posto a serviço de coisas indefensáveis. Penso que os títulos foram conseguidos não porque o suposto estudioso estivesse em busca do conhecimento, mas em busca de títulos para colocá-los a serviço da estupidez.

Me sinto desmilinguir quando a religião é posta a serviço desse mesmo procedimento, mesmo não sendo religioso, e já expliquei isso em algum lugar, respeito a religião e quem necessita dela para prover seu espírito de força. Minha relação com o Altíssimo não desmilingua porque não recorro à religião. Mas, quando vejo a religião posta a serviço da desinformação, vejo-a ser desmilinguida pelo seu uso indevido, invertendo tudo aquilo que uma religião deveria fornecer: a segurança espiritual e o conforto tão necessários nos momentos difíceis da vida.

Me sinto desmilinguir se não tento confrontar o desconhecimento. Porém, é uma tarefa impossível ir às redes tentando convencer aqueles que não querem ser convencidos, mas rindo vendo o mundo à volta se desmilinguir, e rir disso, embora nervoso. Fico pensando que a humanidade, em sua maioria, ou, pelo menos, a maioria barulhenta, vibra com esse desconforto e esse desmanchar dos nossos espíritos.

O conhecimento é perverso. Ele desvenda a realidade e nos assusta. Entender a realidade é um sofrimento. Mas esse sofrimento desperta o desejo de sobrevivência. Ao entrar em contato com o sofrimento, nos sentimos desmilinguir porque tentamos entender a realidade. Mas é justamente onde vamos encontrar forças para resistir, e não deixar desmanchar ou desmilinguir nossas esperanças.

Mais do que nunca devemos resistir, a despeito do sofrimento de ver aqueles que negam a realidade e o seu impacto sobre nossas existências.

Tentando manter a serenidade diante dos acontecimentos, longe de nos desmilinguirmos, estaremos enfrentando, com coragem, as adversidades. Há um sentido muito claro quando a ignorância tenta assumir o controle da situação. O ignorante é covarde e finge estabelecer uma luta, porque busca a confusão e o desconcerto, porque é preguiçoso na busca do conhecimento.

Não desmilinguir é um ato de resistência que devemos perdurar. Não desmilinguir a nós mesmos é a melhor forma de demonstrar que somos fortes.

Sabemos que, na verdade, a ignorância não resistirá por muito tempo. Ela vai se desmilinguir com o tempo, para mais ou para menos, e o importante é permanecer resistindo, tentando não se desmilinguir por dentro.

Nilson Lattari

390 Posts

Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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