Coluna

Corpo fechado no sambódromo

- Salgueiro de corpo fechado, Marineth, é o tema da vermelho e branco que, segundo o carnavalesco Jorge Silveira, “irá passar na maior encruzilhada do mundo, a Marquês de Sapucaí, o sambódromo”. Ele assegura que a escola preparará “o tacho de óleo de oliva, arruda, guiné, alecrim, carqueja, alho e cravo, sem medo de macumba, sem medo de quiumba”. Vou conferir!

- Athaliba, o enredo é um desafio à intolerância religiosa. Em 2018, por exemplo, na região da Baixada Fluminense, 30 terreiros de candomblé e umbanda, religiões de matriz africana, foram depredados. Um deles, em Nova Iguaçu, destruído por traficantes, foi transformado em base para esconderijo, refúgio, dos criminosos.

- Tô sabendo, Marineth. Uma facção de traficantes se autodenomina “Tropa de Arão”, uma figura cristã, irmão de Moisés. O símbolo, estrela de David, é pichado em muros nas entradas de favelas, também exibido em luz neon, no alto de uma caixa d’água de uma comunidade. A área de atuação dos delinquentes é conhecida como “Complexo de Israel”, alusão à “terra prometida” para o povo de Deus, como prega a Bíblia. O bando representa o fanatismo evangélico religioso.

Logomarca do enredo da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro para o Carnaval 202. Reprodução - 

- O trem é doido, Athaliba. Os delinquentes utilizam a religião na briga com outras facções por domínio de territórios. E são classificados de “narcopentecostalismo”: traficantes evangélicos. O Rio de Janeiro, lamentavelmente, se materializa como “indústria do crime”, como já sinalizava o jornalista Jorge Elias de Barros Sobrinho, teu saudoso amigo e compadre. Mas, o que inspirou o tema Salgueiro de corpo fechado?

- Marineth, a escola criou o cargo de enredista, na carcaça do carnaval. Cabe ao enredista pesquisar e desenvolver o enredo. Essa tarefa é exercida pelo jornalista Igor Ricardo. Muito bem. A história e cultura do fechamento do corpo estão implantadas num conjunto de superstições de religiões africanas e europeias. A crença na invulnerabilidade chegou ao país com os mandigos escravizados do antigo Império Mali. Eram guerreiros, feiticeiros e seguidores do islasmismo.

- Athaliba, o assunto é Interessante. O que ocê conhece da história do Império Mali?

- Marineth, o Sundiata Keita, fundador do Império Mali, era adepto da religião islâmica. No entanto, como se propagava, tinha poderes mágicos vindos dos amuletos que utilizava. Nascido no final do século XII, na atual Guiné, é conhecido como “o Rei Leão”. Ainda é citado nas canções dos griots, contadores de histórias tradicionais. Ele superou defeito físico que o impedia de andar, graças à sua determinação, tornando-se exímio caçador. Também, porque não dizer, através de feitiçaria. Era poderoso guerreiro, estrategista militar, que unificou os reinos da África Ocidental.

- Athaliba, esse personagem, realmente, merece ser enredo de escola de samba.

- Marineth, o Sundiata é considerado figura semi-lendária. Registros escritos sobre ele são escassos. Historiadores são dependentes de subsídios dos contos dos griots, difundidos de boca em boca, antes de escritos por estudiosos franceses no período de 1890. Como parte dos cantos existe o viés da feitiçaria que os escravizados nos transmitiram. Assim, “o enredo - na visão do carnavalesco - reflete a alma e a ancestralidade que o Salgueiro valoriza”. Admite que se trata de apelo espiritual “para que a escola entre no sambódromo protegido e determinado a conquistar o título de campeã”.

- Athaliba, desejo boa sorte para a direção e para os componentes do Salgueiro, que será a 3ª escola a desfilar, 2ª feira, dia 3 de março. Ano que vem o desfile acontecerá em três dias. Dia 2/3, domingo, teremos Unidos de Padre Miguel, Imperatriz, Viradouro e Mangueira. Dia 3/3, além do Salgueiro, desfilarão Unidos da Tijuca, Beija-Flor e Vila Isabel. Na 3ª feira, dia 4, irão desfilar a Mocidade, Paraiso do Tuiuti, Grande Rio e Portela.

- Marineth, a citação de poderes de Sundiata, originários dos amuletos usados no pescoço, me relembraram um caso contado pelo saudoso amigo e jornalista Jarbas Domingos Vaz. Dizia que um bandido de vulgo Horroroso, baleado em troca de tiros com policiais, morreu cravando os dentes (mordendo com raiva) na guia (cordão) de orixá que tinha no pescoço.

- Athaliba, fico imaginando essa cena dantesca, se é que assim se pode classificar.

- Marineth, o fato é ratificado por meu amigo jornalista Luarlindo Ernesto. Ele ganhou três Prêmios Esso, com mais de 60 anos de profissão e ainda em atividade. Bem, vou conferir (mais uma vez fazendo cobertura jornalística do desfile das escolas de samba) detalhes do Salgueiro de corpo fechado. E que não me falte a verdade, sob as bênçãos de Xangô e Iansã. Saravá!

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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