Coluna

CANCELAMENTO

alicate
Foto: Michael Dziedzic en Unsplash - 

Desde tempos idos, as vozes não estavam na mesma altura, amplitude e alcance para todos. As vozes tinham suas limitações, não importa se sentiam raiva, alegria ou sentimentos outros por alguém. As vozes críticas, raivosas permaneciam caladas e caladas seguiam para o fim das vidas, sem o direito de todos poderem ouvi e sentir as suas angústias.

Desde tempos idos, a ideia da liberdade, do livre pensamento, do livre dizer ficaram encarceradas dentro de corações e mentes, até que, um dia, essa liberdade ganhou asas. E, através da internet, das redes sociais, filhas e filhos dessa criação ganharam as suas asas e deram a volta ao globo, real time, em segundos; uma rede que se espalhou sem controle ou rédeas. Terrores de governos, empresas, famosos e famosas que sempre se julgavam protegidos em suas capas. Sendo que o único contato que tinham com as pessoas comuns era quando rechaçadas pelos governos, desprezadas por empresas e tratadas como anônimos, no caso de famosos e famosas.

Tudo isso mudou. A liberdade se tornou um ser terrível, correndo sem controle pelas pradarias do mundo virtual e dando vozes a quem não tinha.

Muito se fala da severidade dos julgamentos que anônimos fazem daqueles que não são. Essa liberdade e a falta de segurança caminham juntas. Ninguém pode se sentir seguro diante da liberdade do dizer e fazer das pessoas, de todo mundo. Muitos, nas páginas de jornais e revistas, emitiam suas opiniões; isso no passado. No presente, qualquer palavra, gesto ou opinião têm sua resposta em tempo real. O que não se queria mais ouvir ou falar, no passado, era uma revolta que o anônimo guardava dentro de si. Hoje, ele pode cancelar quem queira. E esse julgamento, feito a ferro e fogo, é estampado para o famoso ou famosa que se encontrava imune em tempos idos. Hoje eles veem seu público oscilar e sentem isso no bolso e no ego.

Cancelar é um processo de julgamento em praça pública ao qual todos estão sujeitos. E o julgamento entre os comuns também são tão cruéis quanto. O achincalhe, o deboche e o uso de robôs tornam a vida real e artificial ao mesmo tempo. Em tempos de liberdade, como saber se o cancelamento é físico, feito por uma pessoa real ou, simplesmente, um algoritmo que ri e debocha encobrindo seu mentor?

Tempos de liberdade exigem formas de segurança. A única arma possível é a verdade. A questão é saber se essa verdade pode se tornar real ou, simplesmente, ser engolida pela mentira. 

Fake news são frutos da liberdade. Ao mesmo tempo que se pode dizer a verdade, se pode dizer mentiras. As duas coisas se confundem e, nessa hora, a segurança também é cancelada.

Famosos, famosas, governantes e empresários não estão mais seguros. Temem a realidade virtual quando antes não temiam a realidade real. Tristes tempos ou tempos tristes a vida transcorre dentro de uma normalidade de liberdade libertária. A confusão do que fazer com a liberdade leva ao julgamento por qualquer um que tenha um wifi e um teclado na mão.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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