Coluna

“Lula não, meu irmão!”

- Athaliba, nem bem a campanha eleitoral esquentou e já pega fogo. Acarretou atrito entre amigos, numa roda de leitura em universidade, na discussão acalorada sobre a polarização Lula x Bolsonaro. De repente, não mais que de repente, um discreto estudante desarrumou o círculo das cadeiras ao gritar: “Lula não, meu irmão!” No ambiente antes poetizado, por alguns segundos se fez profundo silêncio, quebrado pelo som de jatos d ‘água da chuva caindo nos baldes de plástico espelhados pelo chão. A água jorrava aos borbotões pelas várias fendas no teto com ferragens enferrujadas escancaradas. Esse cenário de flagrante estado de precariedade da estrutura física do prédio não é privilégio do citado recinto. É a amostra grátis do total descaso do podre poder público no conjunto arquitetônico da conceituada instituição de ensino.

- Marineth, é evidente que quero saber de ocê dos detalhes das ruínas no estabelecimento de ensino, prejudicial à educação. Mas, o que levou o carinha a gritar “Lula não, meu irmão!”?

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Drummond estatuado em Itabira pelo artista plástico e cartunista Genin Guerra. Por várias vezes vandalizado, com o roubo dos óculos. Foto: Lenin Novaes - 

- Athaliba, discutia-se na roda a obra do poeta Carlos Drummond de Andrade, enfocada na poesia “A flor e a náusea”. Ocê e a miúda comunidade literária do Brasil sabe que neste 2022 se comemora os 120 anos do poeta. Ou não? E, aí, a declamação da poesia foi interrompida quando alguém induziu que Lula representava a esperança simbolizada na flor, provocativamente. Brotou daí célere bate-boca, entre a maioria lulista e a minoria bolsonarista. E o aluno, reconhecido como tímido, introvertido, poltrão, subiu na cadeira e bradou a pleno pulmões: “Lula não, meu irmão!”.

- Agora posso compreender como a perplexidade pegou todos de cheio, Marineth.

- Sim, Athaliba. Resguardadas as devidas diferenças, a perplexidade foi igual à exploração radiofônica e televisiva do funk que diz: “Que tiro foi esse/Que tiro foi esse que tá um arraso/Que tiro foi esse, viado”. Essa bobagem ecoou como “maravilha musical” por todos os cantos do país.

- Desculpe-me, Marineth, mas, por favor, pare por aí. Afinal, qual foi o ato consecutivo da convulsão na roda de leitura que poderia chegar à bordoada entre estudantes?

- Os lulistas embravecidos, Athaliba, exigiram do colega uma plausível explicação para sua indiscreta, inoportuna ousadia. Então, ainda trepado na cadeira, ele explanou o que pensava:

“Caros colegas, o Bolsonaro é cachorro morto. E em cachorro morto não se pisa. Quanto a Lula, ele teve nas mãos a chance de ouro de realizar benéfica missão em favor do crescimento e do desenvolvimento do Brasil, em dois mandatos. Mas, deu com os burros n’água, ao atraiçoar os aliados signatários de carta compromisso, nas eleições de 2002. A empáfia ao personalismo o levou às armadilhas do neoliberalismo praticado pelo antecessor Fernando Henrique Cardoso. De quem um parente de 1º grau, militante do PCB, não tinha a mínima confiança política nele. Lula jamais enfrentou turbulências internacionais desfavoráveis aos seus governos. Foi venerado por pseudo intelectuais por ser o primeiro operário a chegar à presidência da República. O Brasil não precisa de salvador da pátria, colegas. Ele decepcionou a população ao desperdiçar a chance que teve. Portanto, acompanho o poeta ao afirmar que ‘Meu ódio é o melhor de mim, com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima’. Então, Lula não, meu irmão!”.

- Bem, Marineth, não existe dono da verdade, pois a verdade é igual à crítica do crítico. No poema “A flor e a náusea”, Carlos Drummond de Andrade já sinalizava: “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”. Como não pirar num contexto deste, que funde qualquer cuca. Aquele tempo era pior do que vivemos presentemente? Os divãs de psicólogos e psiquiatras abarrotam pacientes com síndrome de falência deste sistema político. O trem é doido!

- Tem razão, Athaliba. É preciso levar em conta que a conturbada situação da política brasileira afeta o juízo psicológico de estudantes, que se agrava com as péssimas condições da instituição de ensino. Ocê sabe lá o que é faltar até papel higiênico nos banheiros? Frequentar as salas de aula em ruínas? Executar pesquisas diante da iminência de fechamento de laboratórios, inclusive os que pesquisam com elementos vivos, por falta de energia? O anúncio do governo em cortar dinheiro nos minguados orçamentos das universidades e institutos federais compromete o ensino de milhões e milhões de estudantes. Professores comem o pão que o diabo amassou para cumprir a sagrada missão. Infelizmente, a educação continuará sem perspectiva de futuro.

- Marineth, o país só terá plena soberania e problemas depurados através de um processo sedicioso. Será que o poeta a isso se refere quando diz que “Uma flor nasceu na rua”. Que “É feia; mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Oh, amiga, tomara que sim!!!

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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