Internacional

“Mulheres dos traficantes são muito mais do que bonequinhas da máfia”

Jornalista mexicana fala sobre seu novo livro ‘Emma y las otras señoras del narco’ em que entra no círculo mais íntimo dos chefes e acaba com o mito do todo-poderoso senhor das drogas

A jornalista mexicana Anabel Hernández recebeu uma pergunta na Itália que não soube responder: “Qual é o papel das esposas dos senhores da droga em seu país?”. Hernández, como a maioria dos repórteres e autoridades do México, sempre considerou que se tratava de um assunto menor, quase acessório do mundo do crime. Mulheres ingênuas, talvez pouco astutas, muitas vezes com um certo azar, sem outra opção, inocentes e sem responsabilidade por seu destino. Mas ela mesma se surpreendeu com o discurso simplista - e até machista - tantas vezes repetido. Realmente não sabiam o que faziam?

Com mais de 15 anos de carreira revelando as relações entre o narcotráfico e o poder, a jornalista concluiu à época que havia uma parte fundamental que havia perdido de vista após tanto tempo escrevendo e desmascarando o crime. Suas mulheres, às vezes amantes e esposas, eram um pilar fundamental dentro da dinâmica criminosa. São seu apoio emocional, quem os abraça após ordenar um massacre, quem os lembra que não são monstros. Mesmo sendo.

É em sua relação com elas que o grande chefe da droga se descobre mortal, capaz de arriscar o pescoço por um encontro amoroso - como aconteceu com Joaquín El Chapo Guzmán antes de ser preso - e com quem se gaba de sua Ferrari. “São seu oxigênio”, declara a repórter em uma entrevista ao EL PAÍS, convencida de que negligenciar a esfera mais íntima do crime organizado foi um erro e só contribuiu para mitificar homens que não são tão indestrutíveis como parecem.

A jornalista Anabel Hernández, durante um encontro sobre liberdade de imprensa em 2019
A jornalista Anabel Hernández, durante um encontro sobre liberdade de imprensa em 2019 -  

Nesta semana publicou seu novo livro, “Emma y las otras señoras del narco” (Emma e as outras senhoras do tráfico), em que a jornalista fala sobre as esposas e amantes mais relevantes dos líderes dos cartéis da droga, com Emma Coronel, esposa de El Chapo, como protagonista.

Pergunta. O que as senhoras do tráfico têm em comum?

Resposta. Na verdade, o interessante é que cada uma das mulheres que investiguei têm perfis muito diferentes: algumas vêm de famílias de traficantes e outras podem ser uma Miss Universo. Mas muitas delas são um tanto mitômanas. A própria Emma Coronel negou a mim e a todos os outros que seu esposo El Chapo tivesse qualquer relação com o tráfico. Negam automaticamente. E negarão, porque quem vai reconhecer que fez parte dessas redes criminosas? Temos, por exemplo, a senhora Alicia Machado, ex-Miss Universo, que estabelece uma relação com o homem conhecido como El Indio, parte da organização dos Beltrán Leyva, e nos perguntamos: “O que motiva uma mulher como ela, que é bem-sucedida, a se envolver com esse mundo?”. E é aí que as respostas óbvias começam a ficar mais complicadas. Não há uma única resposta para todas elas.

P. De onde veio a ideia de escrever um livro sobre as mulheres do tráfico? O que explica sua vida íntima além da atração pelo crime?

R. Esse não é um livro simplista e de fofocas. É realmente uma crítica social sobre como funcionam todos esses círculos dos grupos criminosos que estão destruindo o México, para compreender cada um dos ângulos.

Tudo começou quando conheci Emma Coronel. Eu a conheci em 2016 quando me deu sua primeira entrevista, pouco depois de El Chapo ser preso pela terceira e última vez. Depois desse encontro fiquei em contato com ela por dois anos, por WhatsApp, ligações. E para mim sempre foi um enigma. Na Europa há um debate, particularmente aqui na Itália, sobre o papel crucial desempenhado pelas mulheres nos clãs mafiosos. Me perguntavam: “Como é no México?”. E eu sempre entendi que era algo menor. Mas decidi repensar. Até esse momento foram principalmente jornalistas homens que tentaram contar no México o papel dessas mulheres e sempre são mostradas como as bonequinhas da máfia, mas são muito mais. Seu papel é mais complexo, é uma sustentação emocional. São realmente parte da motivação dos criminosos para ser criminosos.

P. Elas têm esse nível de responsabilidade?

R. Sim, porque em um sistema machista, patriarcal, como existe no México, o machismo nos círculos criminosos é exacerbado. Esses homens impõem seu ambiente machista através da violência e isso também se impõe em suas casas. Sob essa ótica também colecionam mulheres. Há uma frase de uma testemunha que entrevistei que diz uma coisa muito interessante: “Quando os homens têm tudo economicamente, começam a comprar pessoas”. E, principalmente, os narcotraficantes compram mulheres. De esposas a casar as filhas com outros traficantes, procurar amantes... Essas mulheres são um apoio emocional, as que não os repudiam, os abraçam, as que fazem com que eles se justifiquem: “Bom, eu faço isso por minha família”. As mulheres são indispensáveis, são seu oxigênio. Esses homens sozinhos não poderiam traficar, não existiriam, não sobreviveriam. Precisam desse apoio sentimental, emocional, sexual, de gratificação.

P. Por que Emma Coronel é a protagonista de seu livro?

R. Desde que eu comecei a investigar esse tipo de fenômenos do narcotráfico, desde 2005, soube dois anos depois que El Chapo Guzmán havia se casado com uma adolescente, e desde então tentei entrar em contato com ela. Isso nunca foi possível nessa época, e Emma se transformou para mim em uma pergunta sem resposta. Depois a entrevistei, a vi mentir repetidamente e me perguntei: “Bom, quem são essas mulheres? O que há em suas cabeças?”. Depois, através do julgamento de El Chapo Guzmán soubemos realmente que Emma não era tão feliz como nos dizia, pude entrevistar pessoas que foram muito próximas dela durante o julgamento e que a viam entrar no hotel arrasada. Na corte se apresentava com esse rosto de pedra, sem mostrar irritação, podia escutar os depoimentos mais sangrentos e mais horríveis sobre seu marido, incluindo estupros de meninas, e ela se mantinha impassível. Essa era a atuação! Porque quando voltava ao hotel começava a chorar desesperada, estava irritada com ela mesma. Emma é o fio condutor do meu livro porque é uma espécie de paradigma do papel das mulheres no narcotráfico no México e, além disso, é um paradigma que se rompe, porque o que Emma faz, por fim, é romper com o cartel. Ela se declara culpada. E faz saltar pelos ares a lei de omertà que todas as mulheres da cúpula precisam obedecer.

P. São sempre retratadas como ingênuas, pouco astutas, inocentes, sempre à sombra e cuidando da família. Quanto disso é real e o que você descobriu que não é?

R. É aí que está o antropologicamente interessante. Pois de inocentes não têm nada. Não podem dizer que não sabiam quem era seu marido, seu amante, mesmo sempre negando. Algumas, como Emma, eram menores de idade quando os conheceram; mas outras não, e mesmo sendo mulheres trabalhadoras e bem-sucedidas em sua profissão, se envolveram nesse mundo criminoso. Nos depoimentos que coletei, de gente próxima a elas e eles, quem dirigia o carro, os que abriam e fechavam portas e que estavam ao lado do chefe e participando diretamente dos fatos, além das investigações patrimoniais que realizei, revelam que isso é real. E entendemos que seu círculo íntimo é como uma corte medieval, em que o rei é o traficante, a rainha é a esposa e ao redor circulam atrizes, cantores, atores, os grupos musicais, todos aplaudindo e enaltecendo o chefe.

P. E, segundo alguns dos casos que apresenta, como o de Lucero Sánchez, a amante de El Chapo, que o ajudava com as operações do tráfico de drogas, não só aplaudiam e os consolavam ao chegar em casa, também participavam.

R. Participam e aproveitam e gozam dos bens criminosos obtidos pelo narcotráfico. Sabem que são traficantes, porque esses homens andam acompanhados de suas escoltas armadas até os dentes. É muito evidente quem são e o que fazem.

P. Falando da corte, seu livro não fala somente sobre as mulheres do chefes, e sim da relação destes com o poder e o mundo do espetáculo. Chega a mencionar o ex-prefeito de Acapulco, Félix Salgado Macedonio, e o deputado do Morena, Sergio Mayer, como assíduos das festas dos chefes do cartel de Sinaloa em Guerrero. Como era essa relação entre o tráfico, o poder e o mundo do espetáculo?

R. É um jogo de múltiplas portas onde a corrupção entra e sai com a mesma velocidade que as mulheres, as amantes, as filhas, as esposas e todo mundo. Em meio a essas relações entre funcionários, políticos e empresários com narcotraficantes, circulam mulheres de vários mundos que se transformam em comunicantes. É muito significativo o caso de Andrea Vélez, que tinha uma agência de modelos que enviava prostitutas ao cartel de Sinaloa e à campanha presidencial de Enrique Peña Nieto. As mulheres iam da cama do traficante à cama do político.

P. Muitas das esposas e amantes que você menciona no livro também eram rostos muito conhecidos, como Galilea Montijo, Ninel Conde e Lucha Villa. Por que os traficantes sempre se sentiram atraídos por estar nos círculos dos famosos?

R. Porque precisam disso. De que adianta ter milhões e milhões de dólares se não podem gastá-los e se gabar com alguém? De que adianta ter uma Ferrari se não há quem suba no banco do carona? Parece uma questão muito, muito elementar, mas é assim. Esses traficantes são animais sociais, como qualquer outro ser humano, criminosos desalmados, mas também precisam desse papel de se sentir aceitos, amados, desejados, respeitados, não só porque são criminosos, e sim porque são os patriarcas de seu clã.

P. O que elas chegam a ficar sabendo dos traficantes que mais ninguém sabe?

R. São seu suporte emocional. Por fim, esses homens precisam que alguém os aplauda e reconheça suas vitórias, mesmo sendo vitórias criminosas. E, de alguma forma, os ajudam a fugir do repúdio social, que infelizmente é cada vez menor. Todas essas mulheres são o pilar emocional e isso é fundamental para qualquer ser humano. Por isso é tão importante saber como é a dinâmica dessas células, porque se não as entendermos realmente, não poderemos combatê-las. Aqui estão seus pontos fracos.

P. É contraditório que acumulem mulheres, e algumas muito conhecidas, como a relação de El Chapo com Kate del Castillo, quando muitas vezes é justamente isso que os coloca em risco e causam sua prisão.

R. É que há uma dose de irracionalidade por suas próprias necessidades emocionais e físicas. Percebemos que os traficantes não são esses homens superinteligentes que querem nos fazer acreditar. Nem tudo é estratégia. O livro desmistifica todas essas figuras e os mostram como o que são, qualquer homem comum. No final das contas, têm as mesmas fraquezas e erros que qualquer homem infiel pode ter. Essa imagem de homens indestrutíveis sempre apareceu porque só foi levado em consideração o ponto de vista masculino e os jornalistas, os diretores das séries e as próprias autoridades não abriram à parte emocional. E digamos que não sobrevivem, que precisam de coisas mais simples, como uma Ferrari e uma garota bonita a quem se gabar.

P. Não há nenhuma mulher em seu livro que realmente seja a chefa de um grupo criminoso? Não existiu e não existe nenhuma? Dois nomes me vêm à cabeça: Enedina Arellano Félix e A Rainha do Pacífico.

R. Porque não existem, ou não as encontrei. Sandra Ávila Beltrán (A Rainha do Pacífico) era como muitas dessas mulheres que eram amantes, companheiras sentimentais. Não era nenhum cérebro de um cartel. Enedina ficou com o poder de uma maneira quase acidental e era seu filho, principalmente, que mandava no cartel, não ela. Até agora não encontrei nenhuma mulher que seja a versão feminina de El Chapo e El Mayo.

P. E por que, muitas vindo do mesmo ambiente criminoso, filhas, irmãs e esposas de chefes, não tomaram o poder de algum grupo criminoso?

R. Pelo mesmo esquema machista. Veja, é um contraste muito interessante porque as mulheres das famílias mafiosas da Sicília, quando os maridos são presos, tomam seu lugar. Não é o caso do México. As esposas não têm nenhuma independência, sequer econômica, não podem tomar nenhuma decisão, não têm nada em seu nome e, mesmo vivendo na fartura, dependem completamente deles. Não podem decidir nada como finalizar a etapa criminosa de suas vidas e ir para outro país, por exemplo. Porque eles não querem que elas tenham iniciativa, as querem como escravas.

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