Ritual de Primavera. Tia Akira colheu as flores de Ipê que se espalhavam pelo terreiro, coletou alecrim e sempre vivas do quintal, incluiu outras flores desidratadas e folhagens de capim arrozinho. Botou tudo em volta do círculo de cinzas, formando um bonito arranjo. Preparou o típico chá de primavera, com mate, laranjas e leite, consagrou os tambores mágicos e a flauta doce, e em oração pediu a benção dos Orixás. A comunidade foi se achegando, reverenciando toda as formas de vida ali presente e, após sentarem todos em roda, a matriarca se pôs a falar:
- Fios, se o outono e o inverno trazem uma proposta de recolhimento, a primavera nos convida a irmos pro mundo e compartilhar o que temos de melhor, por isso essa preta véia aqui quer saber: o que nutre os fio? O que gesta sua potência? O que aviva seus talentos? O que faz ocês se sentirem capazes de ser quem ocês quiser ser?
A Comunidade já esperava pelas indagações inspiradas de Tia Akira, uma das zeladoras de nossa pretitude, e apesar de fazer muitas perguntas, ela não esperava que nós a respondêssemos naquele momento. As perguntas eram como sementes, que ao serem jogadas em nosso solo fértil, iam germinando por longos dias...
- E o que faz os fio perder seu poder pessoal? O que faz ocês duvidarem de si mesmos? O que faz os fios quererem competir e disputar entre si?
A gente também sabia que aquele Ritual tinha como principal motivação a briga de duas jovens da Comunidade, que na semana passada deu o que falar. Entre gritos e empurrões, a comunidade tentava apartar aquela kizumba que só findou quando tia Akira, a passos lentos, passou pelo corredor e lançou um olhar severo, fazendo até o chão tremer.
- Fiotinhas, cês tão seno usadas como ferramenta no projeto de aniquilação de sua própria destruição. E só é assim porque por 1 segundo cês esqueceram quem são e de onde vieram. Basta 1 segundo sem saber quem se É, para se envolver com as narrativas derrotistas que o mundo quer impor sobre ocês.
- Se as fiotinha não sabe quem é, se não sabem da onde veio, elas se sentem vazias e isso leva a lugares psicológicos e espirituais muito ruins. Tá aí o início do nosso fim. Tá aí a origem da nossa separação. O povo preto morre quando perdemos a nossa Unidade!
No final daquele Ritual de Equinócio da Primavera, os olhos dos meus Irmãos e Irmãs tinham o mesmo brilho, e a expressão facial indicava uma mesma compreensão. Nós só poderíamos compartilhar algo bom com o mundo, se estivéssemos vivos, nutridos, protegidos, amparados, bem cuidados e bem amados, e a fonte de tudo isso sempre foi, é e será a nossa Comunidade.
O povo preto não apenas sobrevive, mas vive e vive bem quando a partir da nossa própria história abrimos caminhos para outras possibilidades de ser, viver, pensar, sentir, falar, agir e consumir.
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