Acordo cedo todos os dias, tomo o meu café e vou para o trabalho motivando a minha mente a criar ideias capazes de responder duas perguntas: o que é necessário para que os nossos filhos negros sejam livres? O que é necessário para que todas as crianças negras desse mundo sejam livres? O melhor laboratório para essas respostas não são os livros, é a observação do cotidiano. Na hora do almoço, pego a minha marmita e vou almoçar discretamente na praça, só para escutar a conversa das jovens mães que, mesmo após João Pedro, Ágata Felix, Kauê Ribeiro, Kauan Rosário e tantas outras crianças negras mortas em operações policiais, não desistiram do verbo esperançar.
Dentre algumas mães, uma jovem de vinte e poucos anos tem me chamado bastante atenção, seus cabelos estão sempre impecáveis com trançados vigorosos e suas roupas de estampas alegres lhe torna notável à distância. O estilo único e alegre é estendido para sua filha de aproximadamente quatro anos. Num dia desses, respiro fundo, conto até dez, engulo a vergonha e me aproximo da mãe estilosa:
- Oi moça, tenho observado que você sempre vem aqui na Praça brincar com a sua filha. E vocês são sempre tão estilosas que fiquei curiosa pra saber o que te motiva a todos os dias se arrumar e arrumar a pequena tão bem só pra vir brincar na frente de casa?
- Que inusitada essa pergunta, menina, rs. Bom, quando eu me olho no espelho e me sinto bem com a imagem que eu vejo refletida ali, eu sinto que eu posso qualquer coisa. Eu sinto que eu sou senhora de mim.
- Mas moça, você não acha que essa imagem no espelho pode te aprisionar? Quer dizer, não é bom que a gente também se sinta poderosa mesmo sem todos estes artefatos?
- Eu vou ser obrigada a responder a sua pergunta com outra pergunta, você que é uma jovem negra e questionadora, você não acha que uma roupa, um turbante, uma maquiagem, expressa mais positivamente a sua Identidade? Não é só sobre estar bonita, percebe? a roupa, o cabelo, a maquiagem, o sapato, o perfume podem ser vistos por nós como ferramentas, e serem usadas estrategicamente pra recuperar toda a nossa potência que um dia foi ameaçada pela escravização.
- Sim, a minha mãe é cabeleireira sabe? e eu fico sempre reparando que as mulheres chegam no salão meio borocoxô, mas depois de fazerem as unhas e arrumar os cabelos, elas se sentem muito poderosas, as emoções mudam radicalmente.
- É sobre isso! E olha, nem precisamos gastar muito pra se valorizar, viu? o meu guarda roupa por exemplo é 100% composto pelas roupas do Makebas Brechó, uma marca sustentável e afrocentrada com peças super criteriosas que nos permite contar a nossa própria história sem precisar falar nada. É só vestir e arrasar!
- Que maneiro, brechó é tudo de bom né? além de envolver o consumo consciente que promove mudanças significativas para o meio ambiente e para a sociedade, eles ainda ressignificam a forma como lidamos com a moda.
- Total, e qualquer coisa que empodere as pessoas e alimente suas almas, mantendo o respeito pelo meio ambiente, a saúde humana e animal e condições dignas para quem produz, é, na verdade, uma forma de política.
Ao retornar para o expediente após essa aula magistral, a mensagem que trago dentro de mim é que em um mundo que insiste em nos desumanizar, a autovalorização seguida do autoamor são os principais ingredientes para que nós, negras e negros, sejamos realmente livres.
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