Coluna

O BODE E A QUARENTENA

bode
Crédito: Krzysztof Kowalik / Unsplash

Nossas conversas, atualmente, giram na divisão do mundo entre o antes, durante e depois da quarentena, com as pessoas comentando sobre a volta ao normal, ou novo normal (acho que é a expressão da moda, depois da pós-verdade – uma mentira de araque). À minha cabeça veio a história do bode na sala. Que se resume a dizer que a situação está ruim, mas ao se colocar um bode na sala, a retirada dele torna a realidade horrorosa mais tolerável. E, em um suspiro de alívio, aceitamos a situação em que vivemos. Ou seja, se está ruim, a coisa pode ficar pior: o vírus é, no caso, para alguns, o novo bode na sala.

Parece até que esquecemos que o mundo era desigual, e voltará a ser desigual, inclusive a desigualdade é um bode na sala, mas, a parte mais igual não parece se importar muito.

A desigualdade é eterna, e que bom seria que a volta ao normal fosse a sua extinção, junto com o vírus. Acredito que a vacina contra a desigualdade seria bem melhor, preparando a todos, com consciência, para enfrentar pandemias.

Para externar uma pseudo normalidade, vejo alguns argumentos mostrando que se morre muito mais de outras doenças do que propriamente do vírus. Mas acho, também, que ninguém ficou preso tanto tempo em suas casas, em um isolamento, por causa das doenças que mais “matam”. Transformando essa coisa terrível em uma terrível competição.

Será que para evitar todas as doenças no top dez das mortes, caso o isolamento fosse aconselhável, as pessoas seguiriam a receita?

Fico imaginando, que a pouca importância que a metade da população dá ao combate contra o coronavírus não estará, também, no trato das outras doenças. Considerando a desigualdade que não permite, a todos, o isolamento em condições iguais.

Praticar exercícios, ter uma boa alimentação, cuidar do meio ambiente, lutar a favor da educação para todos, de forma que o convívio humano seja melhor, equivale à mesma utilidade de usar máscaras. Ou somos todos, no fundo, um bando de mascarados?

Comparar outros motivos de óbitos, como forma de menosprezar as mortes pelo coronavírus, é o mesmo que retirar o bode da sala, no caso as estatísticas, transformando uma doença desconhecida em uma gripezinha.

O problema é a economia, estúpido!

Tudo se resume ao dinheiro. Ninguém está preocupado em salvar o humano, mas o material. É evidente que a pobreza aumentou, a concentração também, justamente pela ausência da circulação do dinheiro na economia. E a concentração vem do fato de que aqueles que detém a renda de uma forma mais resistente não vai ao mercado gastar, e deixando de circular o dinheiro ele segue acumulando nos bancos. Essa é a razão da concentração da renda. Se você tem uma renda assim, percebe que está acumulando dinheiro.

Tem um bode na sala, retirá-lo é um problema sério. Até porque ninguém sabe se o cheiro vai permanecer e se tornar eterno, até uma solução da ciência. A questão é que na outrora normalidade, havia muitos bodes na sala, e muita gente se acostumou ou os tolerou, usando as máscaras da hipocrisia para não sentir o cheiro.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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