Coluna

THE LAST WISH - Parte II

Um conto de E. Palmer

Arquivo

Oito da manhã, sexta-feira.

Com os olhos semiabertos, Alex viu a imagem distorcida de um corvo pousado no parapeito da janela. Seus olhos demoraram um instante para adaptar-se a luz. O pássaro preto batia o bico contra o vidro e grasnava como se quisesse dizer “Nunca mais”, como o corvo de Allan Poe.

Alex esfregou os olhos, como se quisesse despertá-los. Agora, seus olhos pousavam no corvo. A ave bateu asas. Alex foi até a janela e viu a ave se afastar num voo rasante. Olhou para fora pela janela ainda embaçada pelo sereno da manhã fria, e acompanhou o pássaro sumir no nevoeiro que se formou lá fora.

Buck estava deitado no tapete, ao lado da cama, e levantou, balançando o rabo, quando viu o dono levantar-se. Alex deu bom dia para o cachorro e os dois desceram para a cozinha. O escritor encheu a tijela do Buck de ração e, depois de ligar a cafeteira, foi tomar banho.

Vestindo um velho roupão de lã, Alex pegou sua caneca de café - outro presente da mulher -, onde estava escrito “já disse que te amo hoje?”, um sanduíche e subiu as escadas. Subiu não é bem o termo - se arrastou em direção ao escritório. Não estava nada bem. Porra, essas noites de porre estavam arrasando com ele.

Deitado no sofá velho do escritório, Alex assiste na TV o noticiário da CNN, enquanto divide nacos de carne do sanduíche com Buck. Aquela manhã, no entanto, sentia-se pior do que nunca - arrepios, febre, juntas doloridas, dores nas costas, nas pernas e sua cabeça doía. Não era uma simples ressaca. Alex sabia que passaria o dia jogado naquele sofá. Ele sabia disso. Era inevitável. Porque, obviamente, aquelas dores queriam destruí- lo. E ele não tinha ânimo para nada. Com sofrida e silenciosa apreensão ele fechou os olhos tentando, preguiçosamente, dormir e afastar a dor. Esta era uma daquelas manhãs.

Já era quase noite quando Alex acordou. As dores, como por milagre, foram embora. Sim, parecia um milagre porque Alex não tomara remédios. Só café. Era como se a cafeína fosse um remédio milagroso. Só a preguiça e uma irritante indisposição indicavam que ele não esteve bem.

Alex desceu, pegou outra caneca de café da cafeteira que ainda estava ligada e retornou ao escritório. Pretendia escrever um pouco antes de ir ao Joe´s. Na TV, o governo chinês alerta sobre o surgimento, no fim de 2019, de um vírus que causou uma série de casos de pneumonia de origem desconhecida na cidade chinesa de Wuhan. Desde então, esse novo vírus que recebeu o nome técnico de Covid-19, mas que Alex prefere chamar de “A Peste”, matou milhares de pessoas na China e se espalhou pelo mundo. No Brasil, o primeiro caso de coronavírus foi confirmado pelo Ministério da Saúde em 26 de fevereiro, de 2020. Desde então, milhares de pessoas morreram. Sob a égide de um governo fraco e sem um plano emergencial efetivo, o vírus se alastra rapidamente pelo país causando a morte de milhares de pessoas. Os Estados e as cidades decretam o isolamento social e até, em alguns casos, o “lockdown”; o país está vazio. Não há pessoas em nenhum lugar da cidade, que parece ter sido tomada pelo caos. A população presa em casa deixa de trabalhar, produzir e sair às ruas. As ruas ficam desertas como cidades fantasmas e as poucas pessoas autorizadas a saírem, usam máscaras para se proteger. O pânico, a angústia e o caos começam a se instalar, ainda assim, algumas pessoas desrespeitam a quarentena e saem às ruas. Alex é uma delas.

Alex desligou a TV, abriu o notebook e começou a escrever. A parte da tarde era reservada para trabalhar no manuscrito do seu novo romance.

Era bastante metódico. Escrevia diariamente 10 páginas. Aproximadamente 5 mil palavras, antes de desligar o computador e ir para o Joe´s. Seu primeiro romance não fez muito sucesso, mas ele gostava muito dele. Alex sabe que o sucesso de um livro não depende apenas do escritor . Depende de vários fatores. Do editor. Da editora. Da distribuição e, principalmente , da história.

Alex e Buck saíram de casa em direção ao bar do Joe. Aquele dia terminou como todos os outros, uma deliciosa sensação de medo misturado com o vazio. Fazia frio, como nas últimas noites. Alex abriu a pesada porta de madeira e saiu. O vento o açoitava através do seu casaco. Lá longe, quase encoberto pela névoa branca da noite dava para ver as luzes do Joe´s.

Alex precisava beber e conversar um pouco. Estava entediado. Ele usava, além de uma touca de lã preta que lhe protegia a cabeça, seu velho casaco preto, luvas, calça e tênis, também pretos. A roupa negra escondia Alex na noite escura. Buck caminhava ao seu lado como uma sombra, obediente e silenciosa. Eram apenas cinco quarteirões até o bar. As ruas estavam vazias, parecia madrugada. Mas ainda havia uma ligeira claridade brilhosa no céu quando chegaram lá.

Um homem gordo cheirando a bebida passa apressado por Alex enquanto ele cruzava a porta do bar. O escritor chega sempre ao Joe's pontualmente às 7h30. O bar, apesar de velho - como Joe, o dono - tem alguma intenção de sofisticação, mas é apenas decadente. O tempo, certamente acabou com o que havia de luxo e beleza nele. O bar do Joe não é muito movimentado — basicamente, vende cigarro e bebida para os bêbados da cidade, prostitutas e gente sem dinheiro - mas ele se vira. O negócio, na verdade, é hoje um hobby. A aposentadoria da Rede Ferroviária é o bastante para ele e sua mulher viverem.

O bar é um lugar onde os velhos amigos se encontram todas as noites para comentar quem morreu recentemente e como é que este mundo está ficando uma grande merda.

Apesar de tudo, o velho bar é aconchegante e tranquilo. Sobre o imenso balcão de pedra mármore, uma reluzente chopeira de metal com serpentina de 30 metros guarda resquícios dos áureos tempos. O salão, grande e com imensas janelas de vidro jateado é iluminado apenas pelo brilho intermitente das lâmpadas penduradas no teto. As lâmpadas incrustadas em grandes e imponentes lustres não conseguem banir totalmente a escuridão, criam uma atmosfera noir de um pálido brilho amarelo sobre o salão.

Alex parou na entrada e tirou o casaco. Buck parou ao seu lado, sacudindo o pêlo como se espantasse o frio da alma. Por um instante, ele olhou em torno do velho, mas ainda estiloso salão, como se procurasse alguém. No balcão, Joe atendia uma jovem de cabelos negros e curtos que virou-se e olhou para Alex quando ele cruzou a porta. Alex lembrou da primeira vez que entrou no Joe´s e seu olhar cruzou com o de Sarah. Na Jukebox, tocava “Silence”, de Beethoven, como naquela noite.

Aquela era uma noite típica no Joe´s. O velho Joe estava no balcão; e os outros estavam espalhados pelo salão. Os mesmos de sempre. Joe só tinha cinco ou seis clientes habituais — isso se você contar o Buck. Alex todas as noites vem com o cachorro ao bar. Embora na entrada uma placa envelhecida diga: “proibida a entrada de animais”. Na maioria das vezes, o velho Joe faz vista grossa. E quando tenta fazer cumprir a lei, não o faz com muita convicção. Joe sabe que se cumprisse à risca o que diz a placa, nenhum deles estaria alí.

Por idade, eles eram — Bil, Tom, Ruy, Henrique e Alex. Bil, depois do Joe, era o mais velho. Bil, o único negro do grupo, foi durante anos o dono da única funerária da cidade. Ganhou muito dinheiro, mas quando conheceu Rose, 12 anos mais jovem que ele, se desfez do negócio que ela considerava mórbido. Rose morreu e Bil se aposentou.

Tom é o mais gaiato do grupo. Tem 67 anos. E já estava mais bêbado que um gambá. Era vendedor de fertilizante de uma grande empresa da região. Como Bil, também está aposentado. Tem mulher e dois filhos. Ambos casados. Como o resto do grupo, frequenta o bar desde a fase áurea e próspera; quando a cidade tinha uma enorme fábrica de tecido que oferecia emprego e vivia o boom da economia.

Ruy é descendente de russos. Um homem simpático com cabelos cor de cobre e sardas salpicando o nariz e o rosto e com uma expressão bondosa nos olhos que brilhavam caídos sobre o rosto enrugado e sulcado por fortes e profundas linhas de expressão. Seu pai era jornalista; deixaram a antiga União Soviética fugindo da ditadura de Stalin e vieram para o Brasil. Fundou o único jornal da cidade, onde Alex trabalha. Incentivado pelo pai tentou a vida como jornalista, mas não obteve sucesso. Ainda jovem, entrou para a Marinha onde se aposentou como capitão.

Rick, que também já passou dos 60, foi funcionário da fábrica de tecido por trinta anos. Começou como operário da limpeza e se aposentou como gerente de produção. Também é casado e tem uma filha que hoje é professora na escola primária local.

Os seis, contando o Joe, são amigos de infância. E a muitos anos viviam daquela forma, um grupo insosso de velhos irônicos e divertidos. O único lazer eram os encontros noturnos no velho bar, onde se reúnem para beber e relembram velhas histórias, apostando num jogo mórbido de quem morrerá antes de quem.

Alex com o pesado casaco de couro molhado pela neblina que se formou lá fora, nas mãos, sacudiu-o e, por fim, cumprimentou os amigos:

- Boa noite, Joe!
- Boa noite, Alex!
- Boa noite, pessoal! - disse, acenando para os outros rapazes que conversavam espalhados pelas mesas.
- Boa noite, Alex! - responderam todos quase ao mesmo tempo.

Os comprimentos eram sempre à distância, evitando o contato físico. Nada de abraços ou aperto de mão. Muito embora nenhum deles desse muita bola para as regras estabelecidas pelo isolamento social, as regras alí eram as do Joe… “Não quero ninguém perto um do outro. Não quero ninguém transmitindo a peste por aqui!” Uma preocupação normal, já que todos alí já tinham mais de 60, ou estavam bem perto disso.

- Joe, deu no jornal que o prefeito mandou fechar todos os bares da cidade. Acho melhor você fechar essa espelunca ou vai acabar em cana - Bil, o mais gozador começou a falar. Sua voz era trêmula e aguda, rabugenta, até.

- Quero que o prefeito vá para o inferno! O bar é meu e eu fecho quando quiser. Se eu fechar vou fazer o quê? Ficar em casa? Eu não aguento minha mulher nem mais meia hora. Se ficar em casa vou acabar matando aquela infeliz.

O cachorro soltou um gemido e deitou aos pé de Alex, cobrindo os olhos com a pata como que desaprovando a atitude do Billy.

Todos riram, enquanto lá fora o vento gemia em volta do bar, fazendo um barulho estranho nas janelas. Ruy, o mais velho do grupo, teve um acesso de tosse, junto com a risada.

- Desculpem! Essa porra dessa tosse já tem quase uma semana - disse, limpando a boca
com um lenço branco meio encardido e em seguida entornando goela a baixo o resto da cachaça do copo.

Alex pegou uma cerveja e se dirigiu para sua mesa, seguido de perto pelo Buck. Embora já soubesse das notícias do dia pelo noticiário da TV, Alex leva todos os dias a versão impressa do jornal para ler no bar. Começa sempre pela página de quadrinhos. No bar, ele senta sempre na sua mesa preferida, longe do cheiro que vem do banheiro e do som estridente da Jukebox.

Numa mesa ao lado da dele, mantendo uma distância segura por causa da “peste”, o velho Rick fuma seu velho cachimbo com odor característico de chocolate alpino e também lê o jornal. O velho é um dos leitores mais assíduos da coluna de Alex, ele e seus amigos apanham o jornal pela manhã e imediatamente abrem na coluna de óbitos, para ver quem é que se foi antes deles.

Rick é um homem calmo que mais parece uma ovelha, com cabelos e barba branca. Não dá para ver muito de seu rosto, exceto as bolsas e as rugas em volta dos olhos cansados que guardavam todos os miseráveis segredos da vida. A boca também é coberta de pêlos amarelados que cheiram a chocolate e álcool devido o uso constante do fumo e a intimidade com a garrafa de rum.

A fumaça do cachimbo pairava suavemente no ar, espalhando o cheiro suave e denso característico do chocolate que se misturava aos acordes suaves de “Silence”, de Beethoven, que saía da Jukebox, enquanto lá fora a noite caía preguiçosa e o céu era de um azul mais escuro, mais intenso. Uma combinação agradável.

Aquele velho bar era o refúgio daqueles velhos amigos. Todos tinham histórias e velhas lembranças para contar do Joe´s. Principalmente, Alex.

Já era quase uma hora da manhã quando Alex dobrou o jornal, chamou Buck e foram embora.

Ediel Ribeiro (RJ)

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Coluna do Ediel

Ediel Ribeiro é carioca. Jornalista, cartunista e escritor. Co-autor (junto com Sheila Ferreira) do romance "Sonhos são Azuis". É colunista dos jornais O Dia (RJ) e O Folha de Minas (MG). Autor da tira de humor ácido "Patty & Fatty" publicadas nos jornais "Expresso" (RJ) e "O Municipal" (RJ) e Editor dos jornais de humor "Cartoon" e "Hic!". O autor mora atualmente no Rio de Janeiro, entre um bar e outro.

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