Coluna

“O BICHO”

Foi Antônio Callado,  escritor e jornalista - autor de, entre outros, “Quarup” (1967) e “A Madona de Cedro” (1967) - quem, em 1965,  quando era redator-chefe nos Diários Associados levou o cartunista Fortuna para o “Correio da Manhã” e deu a ele o epíteto de cartunista dos cartunistas.

Bem, se não foi, daqui a algum tempo, vai ficar sendo; são assim que algumas lendas se espalham pela imprensa e viram verdades.

A verdade é que Reginaldo José Azevedo Fortuna era, realmente, “o cartunista dos cartunistas”. Talentoso, criativo, além de ter participado das maiores publicações do país como “O Pasquim”, “Pingente”, “O Centavo”, “Balão”, “Tico-Tico”, “Pif-Paf”, “Folhetim”, “Enfim” e a revista “Careta”, criou em 1975 “O Bicho”, uma revista que revolucionou a história em quadrinho brasileira.  Editada pela Codecri, editora do “O Pasquim”.

REPRODUÇÃO

“O Bicho”, idealizada e editada pelo Fortuna, foi uma publicação inspirada na ideia da revista “O Balão” - a primeira revista undergroud brasileira - editada em São Paulo, em novembro de 1972, pelo cartunista Luiz Gê.

A número zero chegou às bancas em meados de março de 1975, trazendo, além do Fortuna, os cartunistas Guidacci, Nani, Luiz Gê, Coentro, Mollica, Duayer, Laerte, Dirceu, Crau, Paulo Caruso e outros.

Aos poucos, juntaram-se a eles: Mariza, Michele, Luscar, Lapi, Chico Caruso, Miguel Paiva, Zeluco, Redi, Geandré, Luiz Fernando Veríssimo, Nilson, Canini, Parrot e Fausto.

Com uma tiragem de 15 mil exemplares, “O Bicho” chegou às bancas trazendo a nata dos cartunistas da época, além de resgatar trabalhos antigos de cartunistas e desenhistas brasileiros e estrangeiros como Luiz Sá, Carlos Estevão, Quino, Roger Brand, Seth, Crumb, Wolinsky e Mary Kay Brown, entre outros.

A revista combatia as HQs enlatadas que eram trazidas ao país, trazendo sob o título o dístico: “Cartuns e Quadrinhos não enlatados”, em uma clara alusão aos quadrinhos estrangeiros que chegavam aos jornais brasileiros quase prontos para serem  impressos e custavam bem mais baratos que os nacionais.

A cada edição a revista trazia entrevistas e matérias especiais resgatando a memória de artistas como Seth, Luiz Sá, Carlos Estevão e outros. Numa delas, Fortuna foi até o Sanatório Azevedo Lima, em Niterói, entrevistar o desenhista Luiz Sá, que se encontrava internado para tratamento de tuberculose. Nessa entrevista, Luiz Sá fala de toda a sua carreira, inclusive sobre seus personagens e desenhos animados.

“O Bicho” inovou publicando  a tira “Ignorabus, o Contador de Histórias”, uma série produzidas e publicadas originalmente no “Diário da Noite”, em 1948. As tiras, diferentes das tiras convencionais da época, eram desenhadas por Carlos Estevão e escritas por Millôr Fernandes (que, na época, assinava como Vão Gôgo). 

A oitava e última edição de "O Bicho", trazia a  quadrinização da música de Gilberto Gil, “Chiquinho Azevedo” (1976), com o roteiro elaborado por Fortuna e Crau.

A letra da música ilustrada pelo Zeluco, conta a história real de um garoto que estava se afogando, e foi salvo por seu baterista. Composta na época em que Gil e o baterista Chiquinho Azevedo foram presos por porte de maconha em Florianópolis. Gil só gravaria essa música já nos anos 90, no disco Quanta. 

“O Bicho” teve vida curta, apenas oito edições. Com as contas vencidas e praticamente nenhum anunciantes, Fortuna criou uma empresa fantasma para anunciar na revista e com isso tentar atrair anunciantes reais.

A artimanha não deu certo e em novembro de 1976, "O Bicho" apareceu pela última vez nas bancas.

Ediel Ribeiro (RJ)

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Coluna do Ediel

Ediel Ribeiro é carioca. Jornalista, cartunista e escritor. Co-autor (junto com Sheila Ferreira) do romance "Sonhos são Azuis". É colunista dos jornais O Dia (RJ) e O Folha de Minas (MG). Autor da tira de humor ácido "Patty & Fatty" publicadas nos jornais "Expresso" (RJ) e "O Municipal" (RJ) e Editor dos jornais de humor "Cartoon" e "Hic!". O autor mora atualmente no Rio de Janeiro, entre um bar e outro.

Comentários


  • 14-03-2020 01:09:14 Crau da Ilha

    Oi Ediel. Que prazer ver essa história sendo lembrada. Era um grito contra a medicina sem foco no ser humano! Mas não fui eu quem ilustrou a letra de "Chiquinho Azevedo". Foi o Zeluco mesmo. Apenas descolei a matéria, consegui a letra inédita com o Gil e colaborei com o roteiro com a sugestão de colocar a partitura no final, gentilmente transcrita pelo maestro Julio Medaglia. Recortamos o manuscrito do Gil e fomos, Fortuna e eu, à casa do Zeluco onde ele desenhou verso por verso, quadro por quadro (artista plástico, ele trabalhava com os quadrinhos soltos). Foi assim.