- Athaliba, creio que se deve atribuir à “providência divina” a ação que impediu o possível abate generalizado de travestis em Belô, na capital das Gerais. Há algumas horas antes da encenação da peça teatral de coroação a Nossa Senhora dos Travestis, do grupo da Academia Transliterária, o prefeito Kalil decretou a proibição do evento. Ele foi pressionado a vetar a atração incluída entre as 447 atividades na programação da Virada Cultural de Belo Horizonte, ocorrida no fim de semana, por abaixo-assinado online de aproximadamente 15 mil internautas e por D. Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo da Arquidiocese de Belo Horizonte e presidente da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que baixou nota defendendo a religião cristã. Os jornais e sites fizeram “barba, cabelo e bigode” sobre o assunto inusitado.
- Marineth, qual o motivo da proibição à performance de Nossa Senhora dos Travestis, uma vez que Kalil, camisa polo rosa, há poucos dias, discursou e foi ovacionado por mais de 250 mil pessoas no palanque da 22ª edição da Parada do Orgulho LGBTi em BH?
- Athaliba, pois é. Na multidão da Parada LGBTi, ele proferiu os seguintes conselhos sobre igualdade: “Primeiro (digam mais), ‘não sei’, porque isso é libertador. Depois, virem para quem está ao seu lado e digam ‘eu te amo’. E, em terceiro, ‘f***-se’ os que pensam o contrário”. Mas, os instantes que antecederam a abertura oficial da Virada Cultural foram tensos e de muita correria nos órgãos municipais e agitação nas redes sociais. Apesar de cumprir as exigências do ritual para figurar na programação, o grupo teatral da Transliterária sofreu violento bombardeio de torpedos disparados nas redes sociais. E, entre a cruz cristã e a espada dos travestis, diante da inédita petição online, Kalil botou as “barbas de molho”. Justificou o veto alegando que “sou católico, devoto de Santa Rita de Cássia, e fiquem tranquilos, pois ninguém vai agredir a religião de ninguém”.
- É, Marineth, diz o ditado: “quem tem c** tem medo”.
- Athaliba, bota medo nisso. A nota religiosa pedia a “todos os católicos a se manifestarem, exigindo respeito e a suspensão imediata desta criminosa ação, um desrespeito; e que seja também acolhido o nosso pedido, protocolado junto a autoridades e instâncias competentes de defesa da verdade e da moralidade, das quais se espera o posicionamento legal e urgente, com a proibição desse ato abominável contra a fé cristã católica”.
- Marineth, isso alimentou o rastilho de pólvora contra a coroação a N. S. dos Travestis nas redes sociais, né? A convocação de fiéis por D. Walmor ao ato teatral foi um espalha brasa.
- É Isso mesmo, Athaliba. É possível que, mais que a coerência, o bom senso, foi o medo o fator decisivo na proibição do evento. A performance começaria na Igreja de São José, na Afonso Pena, seguida por caminhada pela avenida até o palco da Praça Sete, no Espaço Rio de Janeiro, com duração prevista de uma hora e classificação livre. Se realizada, não é difícil prever, poderia resultar em carnificina. As mensagens sobre o caso que circulavam nas redes sociais não deixam a menor dúvida.
- Imagino, Marineth, que a internet foi inundada por tempestade torrencial de mensagens.
- Athaliba, foi um tsunami. Teve de tudo que a fértil imaginação humana possa conceber. Um internauta comentou que “ou você é simpatizante LGBTi ou é devoto e católico, pois as duas coisas não dá para ser”, em relação a Kalil. Outro postou que “às vezes fico pensando naquele versículo: ‘Amai uns aos outros como a si mesmo’ e na recepção de Jesus com Maria Madalena, se vocês não sabem, ela era prostituta”.
- E como reagiu o grupo da Transliterária, Marineth?
- Athaliba, os integrantes botaram “a viola no saco”, protestando contra “a censura de Kalil e Arquidiocese de Belo Horizonte”. Afirmaram ainda que “é importante ressaltar que Minas Gerais continua sendo o estado que mais mata travestis no país, mas seguimos na luta e vamos vencer no amor”. No ano passado, o grupo realizou a coroação de Nossa Senhora dos Travestis no Festival Internacional de Teatro (FIT-BH), no Parque Municipal. Mas, na Virada Cultural de Belo Horizonte “deu ruim”
- Então, Marineth, entre mortos e feridos, todos se salvaram!
- Sim, Athaliba. Acabrunhada estava a transexual Mary Help, consolada pela travesti Lica, na praça redonda de Alucard, junto ao Monumento à Bíblia. Ela, ainda dentro de um vestido lilás, estilo camisola, mangas longas, calcinha fio tanga e sutiã brancos e calçado meia pata arco-íris, salto de 13 cm, forrado e zíper nas laterais, cravejado de pingentes dourados, não se conformava com a proibição da peça da Transliterária. Afinal, tinha se produzido em grande estilo para ir ao evento, acompanhada de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais de Alucard.
- Marineth, quem sabe, numa outra oportunidade ela possa debutar de forma estilosa. Fato consumado, no sentido de não realizado, devido a proibição do chefe do executivo de BH, vamos recordar o poeta Antônio Crispim, que é referência do tema do Festival de Inverno de Alucard. No livro “O amor natural”, publicado pós-morte, tem o poema dele “As mulheres gulosas”:
“As mulheres gulosas
Que chupam picolé
- diz um sábio que sabe –
São mulheres carentes
E o chupam lentamente
Qual se vara chupassem,
E ao chupá-lo já sabem
Que presto se desfaz
Na falácia do gozo
O picolé fuginte
Como se esfaz na mente
O imaginário pênis”.
Comentários