- Atenção, Marineth! Por favor, toma muito cuidado com a rachadinha. A prática, agora, resulta em prisão. A polícia tá dando batida às cegas na Câmara de Vereadores de Alucard, como antigamente fazia nas casas de prostituição, à caça de vereadores que abusa do prazer de escarnecer rachadinha. Já estão trancafiados no xadrez, vendo o sol nascer quadrado, o vereador Weverton Júlio de Freitas Limões, o Nenzinho; e o pastor Ailton Francisco de Moraes, ex-diretor do órgão. Outro vereador, Agnaldo Vieira Gomes, o Enfermeiro, com ordem de prisão decretada, picou a mula. Escafedeu-se.
- Athaliba, por que devo me prevenir, acautelar? Não estou entendendo o sentido do alerta à ameaça da rachadinha. Você sabe que só a compartilho com quem escolho. Tá delirando? O bagulho estava estragado? Explique isso aí direitinho!
- Marineth, muita calma nessa hora. Sou testemunha do quanto cuida da rachadinha, pois, afinal, de acordo com o nosso pacto, ela não te pertence. Sou privilegiado em tê-la, tão somente. Estou me referindo à rachadinha que é armada por parlamentares. Lembra-se do caso do então deputado estadual Flávio Nantes Bolsonaro, atual senador e filho do presidente Bolsonaro, que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro apontou indícios de uma organização criminosa no gabinete dele? Para promotores, o esquema criminoso de desvio de salários dos assessores tem como um dos integrantes o ex-assessor Fabrício Queiroz. As provas apresentadas à justiça levaram à quebra de sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro e de outras 94 pessoas, suspeitas do crime de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
- Athaliba, todo o Brasil vem acompanhando esse caso pela imprensa, na expectativa de que haja justiça. Quero saber em detalhes como a rachadinha começa a virar Alucard de ponta cabeça, conhecida pela exploração desenfreada de minério de ferro e berço natal do poeta Antônio Crispim. O povo, enfim, tá arrebentando as correntes da inércia, deixando de ser apático?
- Marineth é o seguinte: o sacode à cidade tá sendo implementado pelo Ministério Público. A devassa começa pela Câmara de Vereadores. É sabido que parlamentares loteiam os cargos na estrutura da máquina pública, preenchendo a falta de contratação de pessoal por concursos. Maquiavelicamente, sabendo que não existe espaço vazio, eles exploram pessoas em “balcão de negócios”. Cada indivíduo que “empregam”, principalmente nos gabinetes, é obrigado a repassar parte do salário. Dá-se a isso a alcunha de rachadinha.
- Athaliba, essa denominação é classificada como politicamente incorreta, no entendimento dos pregadores de boas maneiras e bons costumes. E não esqueça que em Alucard as mulheres são maioria e podem se sentir ofendidas com essa expressão que produz duplo sentido. Por que não chamar o golpe de “martelada”?
- Marineth, a análise do detalhe da rachadinha cabe aos estudiosos de linguística. O caso do golpe em Alucard - fato que não é exclusivo da cidade, podendo ocorrer em muito dos 5.570 municípios no Brasil - se tornou um escândalo que pode levar o povo alucardeano a punir com o voto os parlamentares da atual gestão, não alcançados pelas garras da justiça, que venham a concorrer às eleições municipais do ano que vem, ou seja, em 2020. Na “boca pequena”, característica do comportamento da população em comentar assuntos picantes, a maioria dos vereadores de Alucard comete esse tipo de crime.
- Athaliba, comenta-se que essa tal rachadinha dá-se devido à cota que cada vereador de Alucard tem em negociação espúria com o prefeito Esponjinha.
- Marineth, o “loteamento” da estrutura administrativa é caso antigo. Nos órgãos do setor cultural, por exemplo, têm “empregados” não qualificados impostos por vereadores. Isso se alarga às demais áreas, tornando a prefeitura “cabide de emprego”. Alucard é a cidade colocada em 6º lugar no ranking de arrecadação de impostos entre os 853 municípios de Minas Gerais. Apesar disso, a população sofre com a ineficiência na educação, saneamento básico, abastecimento de água, saúde, habitação e iluminação pública, entre outros serviços essenciais à qualidade de vida.
- Athaliba, a atuação dos vereadores de Alucard sempre foi esdrúxula, legislando em causa própria, Há pouco tempo, inclusive, repeliram a proposta de redução de 17 para 11 vereadores.
- Isso mesmo, Marineth. Os vereadores Nenzinho e Enfermeiro, denunciados pela prática da rachadinha, foram alguns dos parlamentares que votaram contra o Projeto de Resolução 11/2019, que sugeria alteração do Regimento Interno da Câmara Municipal de Alucard.
- Athaliba, onde estará escondido o vereador Agnaldo Gomes, já considerado foragido?
- Marineth, não dá para imaginar onde está malocado, homiziado. Deixa-o sendo caçado, enquanto incursionamos pelas atividades do Festival de Inverno, que inclusive terá mesa redonda com a associação dos amigos do memorial do poeta Antônio Crispim sobre a crônica “A educação do ser poético”, à véspera do encerramento do evento. É de autoria dele “A flor e a náusea”, poema abaixo, atendendo pedido de leitores.
“Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres, mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
E lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
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