- Athaliba, o aumento do calor e o crescente índice de poluição de resíduos de minério de ferro, causada pelas constantes explosões na exploração de hematita feita pela Yale, sufoca cada vez mais a população retrógada de Alucard. Já houve quem, com muita propriedade, abalizado, a classificasse como “a prostituta do capitalismo selvagem”, atualmente, ameaçada de sucumbir pelo desmoronamento de mais de uma dúzia de barragens, abarrotadas com milhões e milhões de m³ de rejeitos. As pessoas estão atemorizadas e me faz lembrar a expressão “galinhas em pânico” no poema “A flor e a náusea” do poeta Antônio Crispim.
- É, Marineth, a cidade está toda sinalizada com “setas de rotas de fuga” e, por duas vezes, a sirene foi acionada, acordando a população no meio da madrugada. Felizmente foi rebate falso de destruição de barragem. As pessoas vivem amedrontadas. Temem que possa acontecer o que ocorreu nas cidades de Mariana e Brumadinho. As marcas das ruínas em Alucard podem ser vistas da órbita da terra, lá da lua. Enormes e profundas crateras tornam miúdos os gigantescos caminhões que fazem o vai e vem constante carregando milhares de toneladas de minério de ferro para entupir os vagões dos trens.
- Pois é, Athaliba. Na busca de métodos para enfretamento dessa questão, entre outras tantas que estão destruindo a cidade, aceitei convite da professora Anabela e da transexual Mary Help, lideranças das mulheres aguerridas de Alucard, para conhecer e tomar banho na cachoeira de Boa Vista. Tem várias quedas d’água que formam piscinas que possibilitam se refrescar e relaxar. Se chega até lá pela estrada que liga Ipoema à Serra dos Alves.
- Discutir, Marineth, formas de luta em local paradisíaco?
- Sim, Athaliba. A princípio também considerei estranha a proposta. Elas queriam definir estratégias para apresentar à próxima reunião do grupo. Ao chegar lá entendi a ideia de Analeba, que argumentou o seguinte: “Essa cachoeira significa resistência, suporta impactos destruidores das explorações do minério de ferro. Preservada pela natureza, aqui nos refazemos. A Mary Help se sente a sereia de Boa Vista imitando a personagem Emmelie do filme “A lagoa azul”, baseado no livro de Henry de Vera Stacpoode”.
De fato. A transexual tirou o vestido de alças, estampado com flores astromélias, exóticas e bonitas, em várias cores e tonalidades; o sutiã cor da pele e a calcinha tanga lilás. As unhas dos pés pintadas de vermelho realçavam após tirar as sandálias franciscanas de tiras coloridas. O mergulho na piscina da cachoeira, a seguir, fazia lembrar a nadadora Patrícia Amorim, ex-presidente do Flamengo e 28 vezes campeã nos 200, 400, 800 e 1.500 metros livres.
- A Mary Help te encanta, heim, Marineth!
- Sim, Athaliba. Fecha os olhos. Agora a imagina boiando na piscina, iluminada por feixes de luz douradas produzidas pelos raios do sol. Imagem sedutora. Fiquei por algum tempo contemplando-a. Ao sair da água, corpo esguio, os mamilos amarronzados e eretos lembravam bicos de mamadeira. Ela caminhou como se estivesse numa passarela, livre, leve e solta, até nós. Uma beleeeeeeeeeeeeza!
- Me poupe da descrição dos demais detalhes do corpo esbelto, escultural da transexual, Marineth, e me conte o que elas planejaram para livrar Alucard da morte anunciada.
- Bem, Athaliba, a Anabela disse que estava chegando aos limites das ações de luta para acabar com os desmandos da Yale. Deixou escapar que pensava em explodir os trilhos dos trens para impedir, de forma radical, o transporte do minério de ferro. Mary Help demoveu-a da ideia, com seu jeitinho de mestrado em artes cênicas, argumentando que “ainda não é hora de apelarmos para medidas extremas”.
- Talvez, Marineth, só resta ao povo alucardeano a alternativa de executar atos terroristas no sentido de dar um basta à ganância desenfreada da empresa. Alucard tá de ponta cabeça com problemas de toda ordem: rodoviária em pandarecos e fedendo a xixi, prédios históricos em ruínas, praças públicas e monumentos abandonados e vandalizados, como as placas com poemas do poeta Antônio Crispim nos caminhos crispinianos, um dos feudos igual a outros nos órgãos na área cultural alucardeana.
- Athaliba, a expressão de angústia, revolta e tristeza solta pelos poros de Anabela. Ela é muito equilibrada, emocionalmente, mas diz que “qualquer dia vou botar o pau na mesa”. E teve advertência imperativa da transexual que, às gargalhadas, disse “sou eu quem vai botar o pau na mesa, amiga”.
Anabela enfiou os dedos nos cachos dos cabelos de Mary Help, acariciando-a, com a cabeça entre os seios da transexual, ainda nua, e, olhando-me nos olhos, fez o seguinte desabafo: “Tá insuportável essa conjuntura de bancarrota que aniquila o país, deixando as pessoas doentes, sem perspectivas reais de melhores condições de vida. Essa proposta de pacto dos três poderes é uma monumental babaquice, assim como a criação de moeda única (peso real) entre o Brasil e a Argentina; essa flexibilização de posse e porte de armas; o corte de verbas na educação; a desastrosa política ambiental; a falácia da reforma previdenciária; as interferências judiciais na política; o genocídio de negros na matança geral que extermina jovens, etc. etc e tal. Tudo isso é uma carga pesada para as pessoas carregar, à beira do limite entre o céu e o inferno. Esse sistema é intolerável”.
Em seguida, também despida, levou Mary Help à piscina da cachoeira e ambas mergulharam nas águas cristalinas, como que exorcizando os demônios que infernizam o Brasil. E aí fiquei nua e me juntei a elas, misturando nossos corpos no borbulhar das águas em afetuosos beijos e abraços. Uma profunda e inesquecível catarse que nos purificou a alma e energizou os espíritos, sob as bênçãos de Xangô e Iansã.
- Marineth, a historiadora tem razão. Estamos chegando a uma situação de calça de veludo ou bunda de fora, ou como se diz em Alucard: no frio se peida gelo e, no calor, labaredas de fogo. Não existe meio termo. Somente ampla mobilização nacional pode reverter esse quadro dantesco, em revolução, e estabelecer o poder popular no país. E, como estamos às vésperas do Festival de Inverno, vamos nos distender com o poema “A bela Ninféia foi assim tão bela”, do poeta Antônio Crispim:
“A bela Ninféia foi assim tão bela
Como eu a fazia, se sonho ou me lembro?
Em sua garupa de água ou de égua
Que formas traçava, criava meu membro?
A dura Ninféia de encantos furtivos
Preparava filtros? Que feitiço havia
Na pinta da anca, pois só de beijá-la
A pinta castanha logo alvorecia?
A fria Ninféia zombava talvez
Da fúria, da fome, do fausto, da festa
Que o seio pequeno, de bico empinado,
Em mim despertava, tigre na floresta?
A vaga Ninféia, de esparsos amores
(o meu, entre muitos) teria noção
Do mal que me fez, ou por ela me fiz,
Pois que meu algoz era minha criação?”
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