Estamos na periferia de São Paulo, é um sábado ensolarado do ano de 1998. O dia mal começou, e as caixas de som de minha tia já estão na rua, ela é a primeira da favela a acordar, gosta de limpar a casa bem cedinho pra aproveitar o resto do dia bebendo cerveja com a turma. O problema é que ela só limpa a casa ouvindo pagode “no talo” e aí, sempre dá BÓ.
- “Êta vidaaaa, êta vida de cão, a gente ri, a gente chora, a gente abre o coração. Êta vidaa, êta vida de cão...”
- Ô mocreia, cê já tá latindo essas hora da matina? Abaixa essa budega aí que eu quero dormir.
- Horário de dormir já acabou, piriguete, e se tá achando ruim, desce aqui e vamo resolver no debate.
- Se eu descer aí eu vou quebrar todos os dente da sua cara.
- E só vim, hahaha. “Quando eu te vi pela primeira vez, Ôôô. Me encantei com o seu jeitinho de ser Ôôô. Seu olhar tão lindo me fez viajar...”
No meio desse bate boca, meu pai chega com os pacotes de carvão e anuncia que hoje a resenha vai ser na laje de casa, avisa que mãe já está preparando a maionese, e pede pra ela ligar no Orelhão da rua de cima e chamar o restante do povo.
Em meia hora, minha casa tá lotada de gente, o entra e sai pra pegar cerveja é tão intenso que faz até fila na porta. E a falazada? Ah, se tem um povo que fala pelos cotovelos, esse é meu povo, viu. E falam com propriedade de tudo, da inflação galopante até o último lançamento dos Racionais MC’s. A prosa só é interrompida quando alguém grita: “Ahhhhhhhhh, essa é a minha música” e aí o samba começa.
Do nada, brota alguém com os instrumentos: cuíca, tamborim, ganzá, pandeiro, surdo e cavaquinho. O sol que já estava quente pelano, fica ainda mais quente quando as meninas começam a dançar. Sempre tem aquela que vai rebolar na frente de um homem casado, e aí já viu né, mais bate-boca e até uns puxões de cabelo. A briga cessa quando as mulheres saem da cozinha com seus caldeirões e aquele cheirinho maravilhoso de comida caseira feita com amor, hipnotiza a todos. Arroz branco, Arroz colorido, maionese de batata e cenoura, farofa de ovo com bacon, vinagrete, pão de alho caseiro, e o prato principal: linguiça, asinha, coração de galinha, kafta, queijo coalho e muita carne bovina. Pra sobremesa gelatina cremosa, pudim de pão e doce de abacaxi em calda.
Apesar das grandes faltas, as resenhas que acontecem 1 vez por mês são sempre lembradas pela fartura, e só é assim, porque todos se ajudam. Quem pode colaborar come, e quem não pode, come do mesmo jeito, e ainda leva uma marmita pra casa. A coletividade e o cooperativismo é marca do nosso povo, desde o Kemet(1), e é só por causa dessa rede de apoio e de afetos que estamos vivos até hoje.
(1) Kemet é como os antigos egípcios chamavam sua terra, o Egito Antigo, e significa Terra Preta.
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