Coluna

NEWTON SILVA, O “CRUMB DA CAATINGA”

Rio de Janeiro -  Quando conheci o trabalho do cartunista cearense Newton Silva, o que mais me chamou atenção foi o traço rude, forte e exagerado.

As ranhuras, lembram a superfície do xique-xique, uma espécie de cactus, muito comum na Caatinga, especialmente no Ceará.

Newton Silva, o “Robert Crumb da Caatinga”, é chargista, cartunista, ilustrador, escritor e poeta bissexto.

Nasceu em Fortaleza (CE), em novembro de 1960. E, como o cactus, se desenvolveu em solo seco e raso, entre as fendas das rochas, de onde saem os poetas.

Iniciou a carreira como publicitário, em 1982, na agência de propaganda SG Publicidade. Lá, trabalhou como “past-up”, que, naquele tempo, era o profissional que colava os anúncios, com cola de sapateiro. Era tudo feito artesanalmente. 

“Cada um de nós tinha uma prancheta com régua paralela e luminária; uma lata de cola de sapateiro um tubo de benzina; (para diluir a cola), tesouras, estilete, cola branca, cola bastão, esquadro, compasso, fita durex, tinta guache de várias cores, pincéis e as inigualáveis canetas à tinta nanquim da marca Rotring, pois eram as melhores” - disse.

Em 1985 foi convidado pelo jornalista Paulo Karam para trabalhar como ilustrador e quadrinista no extinto jornal “Tribuna do Ceará”, do ex-senador José Afonso Sancho. Lá, nasceram seus principais personagens: “Jujumento”, “Libório” e “Dudu”.

A tirinha “Jujumento - o jumento elemental”, foi premiada com o primeiro lugar no 1º Festival Nacional de Cinema de Animação, Quadrinhos e Games da Região Serrana do Rio de Janeiro.

Paralelamente, escrevia contos e crônicas, semanalmente, para o tabloide “TC Dimensão”, da Solange Palhano, no jornal “O Estado”. 

Em 1987, foi trabalhar no departamento de arte do recém fundado “Diário do Nordeste”. No jornal, fazia, também, a charge diária na coluna “É…”, do jornalista Neno Cavalcante. 

O cartunista nunca teve grandes problemas com a censura. Mas, quando fazia charges para o “Diário do Nordeste” e, diariamente, metia o pau na administração municipal e na atuação pífia dos vereadores. Os edis então, se sentindo importunados pelas charges, passaram a pressionar o editor do jornal, pedindo sua cabeça. 

REPRODUÇÃO

Como não conseguia a demissão do cartunista, o presidente da Câmara se ofereceu para publicar seu livro de charges "No Céu da Pátria Nesse Instante", em troca de maneirar no teor das charges. Os originais do livro chegaram ir para a gráfica indicada pela  Câmara, mas nunca saiu de lá. 

“O dotô mandou dar sumiço", disse um funcionário da gráfica.

“Tempos depois soube que uma nota fiscal de impressão do meu “livro-fantasma” fora emitida para a Câmara dos Vereadores. O livro virou suco e eu não fui comprado por muito pouco” - disse, sorrindo. 

Em 1990, Newton mudou-se para Roraima. Lá, juntamente com o jornalista C. Neto, fundou o jornal “Diário de Roraima”, onde, além de ilustrações, fazia a charge diária. 

Dois anos depois, voltou para Fortaleza, onde vive e trabalha em projetos publicitários.

Do desenho para a disposição das palavras em prosa e versos não houve empecilhos. Newton, por sinal, escreve admiravelmente bem. Foi várias vezes premiado por seus contos e poesias. A crônica “A Visita”, inspirada no conto “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, é uma das mais bonitas.

Ei-la:

A VISITA
Numa meia-noite, insone, agonizava em sono arrebatado e inconcluso. O olho arregalado, aberto como crateras, procurando repousar nalgum recôndito escuro do quarto, sofrendo como um condenado no corredor da morte, a angústia da última noite. 

Ouvi então o bater da porta. Batidas insistentes, tão fortes, que pareciam ser de cem pessoas em desesperada aflição. 

“Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isto, e nada mais". 

Tentei dormir, mas as batidas batiam e insistiam cada vez mais fortes e mais fortes. Aborrecido pela insônia que já me perdurava por meses sem fim, levantei tropeçando nas coisas, caindo nos vãos escuros, nos abismos ancestrais das escadas. 

Há alguém que não quer que eu durma. 

“É só isso e nada mais”. 

As batidas pareciam-me que iriam por a porta abaixo. Provavelmente, tinha acontecido alguma tragédia e viam-me avisar, por certo, pensei. Talvez um incêndio no prédio e tinham me vindo acudir, com certeza, imaginei. 

Batiam mais ainda, quanto mais eu me aproximava da porta, mais batiam. 

Abri a porta e, antes de qualquer coisa, entrou intrépido, um vento gélido e cortante como navalha, fazendo tremer até as estátuas nuas. 

A porta aberta. As batidas cessaram e a noite ainda perdurava lá fora, tão escura como a alma dos demônios. Demorei os olhos a vislumbrar a figura que me batia à porta. Era um velho. Senti um odor nauseabundo e pus a mão no nariz. O velho sorriu-me. 

Aos poucos - isto em segundos que pareciam centenas de horas - comecei então a visualizar o estranho e inconveniente visitante. Trajava um paletó surrado, descolorido, amarrotado. A barba por fazer, desleixada. O bigode de cor amarelada, com certeza pelo uso de tabaco. Exalava dele um odor mal cheiroso de sujeira, um misto de bebida barata, cigarro e suor, que me causou asco. Ele sorriu mostrando os dentes amarelados, mal cuidados. Deixando escapar um mau hálito repugnante, falou com uma voz penetrante: 

- Precisa me convidar para entrar. 

Assenti com a cabeça e ele adentrou lépido, sem cerimônia, refestelando-se em minha poltrona predileta, na sala. 

- Eu o ouvi gritar e gemer, por isso, eu vim o mais rápido que pude. Não vai me servir uma bebida? 

- Não gritei nem gemi ou coisa que o valha! Estava tentando dormir. – confrontei-o, enquanto enchia um copo do meu melhor vinho. 

- Exatamente isso. – Disse o velho, saboreando a bebida. 

- Sua insônia me estava incomodando. Os seus pensamentos desencontrados, os pesadelos inquietantes e os anseios psicóticos são para mim como o mel para as abelhas. – o velho estendeu a mão para pegar mais vinho. 

- O senhor deve ser louco! – bradei, sentindo-me insultado. 

- Certamente, de loucura entendo eu muito bem. De qualquer forma, volte a tentar dormir, apazígue seu sono e pare de pensar em coisas antigas. Não te entregues à mágoa vã. 

O velho encheu outra vez o copo. 

- Aliás, o senhor que deveria estar dormindo. Afinal, quem é mesmo o senhor? 

Então, o velho ficou de pé, contra o azedume da noite, a face branca descorada, o pescoço ceifado, os lábios exangues, o olhar faiscante que tudo perscrutam e os dedos crispados, tal e qual Heathcliff. 

- MEU NOME É RANCOR. E O RANCOR NUNCA DORME. 

Ediel Ribeiro (RJ)

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Coluna do Ediel

Ediel Ribeiro é carioca. Jornalista, cartunista e escritor. Co-autor (junto com Sheila Ferreira) do romance "Sonhos são Azuis". É colunista dos jornais O Dia (RJ) e O Folha de Minas (MG). Autor da tira de humor ácido "Patty & Fatty" publicadas nos jornais "Expresso" (RJ) e "O Municipal" (RJ) e Editor dos jornais de humor "Cartoon" e "Hic!". O autor mora atualmente no Rio de Janeiro, entre um bar e outro.

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