Rio - Vivo na ponte-aérea.
Moro no Rio e minha editora fica em São Paulo.
Em Sampa, a noite, depois do trabalho, saio pela cidade à caça de um bom boteco.
Dessa vez, fui parar no Lambe-Lambe, um barzinho em Higienópolis, com uma agradável varanda e o salão coberto de panfletos coloridos.
Pedi um chopp e, para acompanhar, experimentei a barriga de leitoa bem fritinha servida com salada de feijão fradinho e tomate.
Dá gosto de ver - e de comer - os petiscos da casa. Valeu a visita. Principalmente, porque perto dali, no número 419 da Rua Itacolomi, fica - no oitavo andar - o apartamento onde o Henfil morou, nos anos 80.
A história começa no fim da década de 1970; Henfil muda-se para São Paulo e engaja-se na luta pelo fim do regime militar, pela Anistia e pela Diretas-já.
Participa da criação do Partido dos Trabalhadores, para o qual produz cartuns e desenhos para confecção de cartazes, camisetas, buttons e outros produtos com as imagens de seus personagens: o Zeferino, a Graúna, o Bode Orelana, Ubaldo, o paranóico e Os Fradinhos.
Henfil aluga um apartamento em Higienópolis e leva para morar e trabalhar com ele os cartunistas Angeli, Laerte, Glauco e Nilson.
Aliás, foi do mineiro Nilson a idéia de apelidar o lugar de “bunker”.
No “bunker”, a convivência entre os amigos remetia a comédia “A Casa da Mãe Joana 2”, do ator e diretor Hugo Carvana, que conta a história do tempo em que ele dividiu um apartamento no Leblon (RJ) com Daniel Filho, Luís Carlos Miele e Roberto Maia, no fim dos anos 1950.
Era um grupo de desenhistas reunidos com a intenção de produzir em conjunto. A idéia deu certo durante um tempo. Mas, administrar o ego de pessoas tão diversas e talentosas não era tarefa fácil. E o negócio desandou.
Henfil era uma pessoa muito contraditória. Por um lado, era um gênio, um artista, um ativista, por outro, uma pessoa muito metódica e inquieta. Mas era respeitado e admirado pelos colegas. “Estou falando com Deus, pensava, quando conheci o Henfil”, declarou Glauco, em uma entrevista.
O apartamento não tinha nada; era uma sala enorme com alguns móveis de bambu, um aparelho de som grande e umas almofadas.
“A gente não morava, apenas, passava o dia inteiro lá lambendo o Henfil e o Henfil lambendo a gente, enfim, num convívio mútuo muito tesudo naquele tempo”, dizia Laerte.
Na época, Henfil já havia contraído o vírus HIV, durante uma transfusão de sangue. Tinha muitas dores nas articulações, isso inibia as saídas na noite paulistana com os amigos e o quinteto acabavam jogados na sala do apartamento, curtindo uma noite de bebidas e jazz, embalados pelo bongô do Henfil e a guitarra elétrica do Glauco.
No “bunker”, Henfil chegou a pensar em criar um tipo de programa para a TV com os cartunistas. Inspirado no programa Monty Phyton, mas a ideia não vingou. Sabe-se apenas que o nome provisório seria “A Canalha de Canudos”.
Henfil, cujo apelido de infância era Tuneba, punha apelido em todo mundo. Laerte, por exemplo, era Dodô; Glauco que sumia com tudo - das chaves ao RG -, ganhou o apelido de Doril.
O cartunista trabalhava nos jornais “O Movimento” e “A Notícia” e engajou-se na Oboré - empresa de jornalismo popular criada em 1987 -, onde atuava como quadrinista para sindicatos e associações de trabalhadores, junto com Angeli, Laerte, Glauco e Nilson.
Além dos cinco cartunistas, eram presenças constantes no apartamento o Frei Julião; Frei Beto; os cantores Belchior e Gonzaguinha; o jornalista e biógrafo Fernando Morais e o jornalista e romancista Ignácio de Loyola Brandão, entre outros.
Com a volta do Henfil para o Rio, para tratar da hemofilia, os amigos montaram, num teatro na Mooca, o show “Bomba H”, com o objetivo de arrecadar dinheiro para pagar o tratamento do cartunista.
O show, realizado em 4 de janeiro de 1988, reuniu, entre outros, nomes como Jô Soares, Luiz Fernando Veríssimo, Ronald Golias, Paulo Caruso e Cacá Rosset.
Quis o destino que, ao final do evento, o locutor Osmar Santos anunciasse a morte do cartunista, no Rio.
O prédio da Itacolomi ainda conserva as cores e o visual sessentista do final da década de 70, encontrado pelo cartunista.
Mas, no “bunker”, não resta nenhuma lembrança do sonho daqueles rapazes, nada. Parece que o sonho inexistiu, como diria Paulo Francis.
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