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O ICÔNICO MAU CHEIRO

Rio de Janeiro - Já escrevi aqui neste espaço sobre centenas de bares onde já bebi. Hoje vou escrever sobre um bar que não frequentei, mas que gostaria de ter frequentado: o ‘Mau Cheiro’, um dos bares mais emblemáticos da boemia carioca dos anos 60.

Quando comecei a frequentar o boteco que ficava na esquina da Avenida Vieira Souto com a Rua Rainha Elizabeth, em Ipanema, ele já tinha mudado de cara, de dono e de nome, passou a se chamar ‘Barril 1800’.

O ‘Mau Cheiro’ era moda nos anos 60. Um bar tipo "pé sujo, um botequim despretensioso - o apelido inusitado foi escolhido por ser o boteco onde pescadores limpavam peixe na calçada - que, no início, era frequentado por motoristas, trocadores (trocadores, para os mais jovens, era o profissional que cobrava as passagens dos passageiros nos ônibus das cidades) e funcionários da Shell.

No final dos anos 60, passou por uma reforma. Ganhou toldo, mesas na calçada e uma nova clientela que incluia gente do cinema, teatro, da música, jornalistas, escritores e boêmios de diversas tribos. Nesta época, nomes como Jaguar, Sérgio Cabral, Tarso de Castro, Ziraldo, Carlos Leonam, Joaquim Ferreira dos Santos e outros, passaram a adotar o ‘Mau Cheiro’ como extensão das redações.

jaguar
Jaguar / Reprodução. 

Em 1963, os donos, embriagados pelo sucesso, realizaram uma nova reforma, desta vez, exageraram, destruindo o antigo charme do bar: a fama de pé-sujo alegre, barulhento, sempre carregado de fumaça de cigarro, chope gelado e conversas intermináveis. “E sem drogas. Todo mundo ia de cerveja e cuba-libre. Só Silvinha Maconha puxava fumo, daí o apelido”, lembra Jaguar. O local foi desinfetado, redecorado, mudou o nome para "Bar Rio 1800" e foram criados shows noturnos para turistas. Resultado: a clientela antiga foi embora.

Mais tarde, trocou novamente o nome para Barril 1800. Sobreviveu até 2007 como um botequim simpático, mas sem o carisma de seu histórico antecessor: o ‘Mau Cheiro’.

O bar entrou para a memória afetiva carioca como símbolo de uma época em que bares não eram apenas lugares de beber, mas também trincheiras de criação e resistência. A princípio, era só mais um bar de bairro, mas rapidamente se transformou em ponto de encontro da intelligentsia carioca.

Assim como o Belmonte, o Jangadeiros, o Antonio's, e o Villarino, o ‘Mau Cheiro’ consolidou-se como espaço mítico da vida noturna do Rio. Sua lembrança, mesmo décadas depois, ainda carrega o charme daquela boemia irreverente, que misturava humor ácido, amizade e um pouco de caos criativo.

O Mau Cheiro funcionava como redação paralela: ali nasciam pautas, charges, reportagens e piadas que depois estampariam jornais e revistas. Muitos projetos de humor e até esboços do Pasquim começaram entre copos e tremoços, nas mesas apertadas do bar.

Com o tempo, o Mau Cheiro virou moda. Estar ali significava fazer parte da roda que ditava os rumos culturais e políticos do Rio. Era uma espécie de credencial boêmia. A boemia era a alma do Mau Cheiro. Músicos passavam por lá depois dos shows, sambistas se juntavam aos jornalistas, e a madrugada virava uma confusão criativa. O bar não tinha luxo algum — mesas de madeira bambas, garçons mal-humorados e chope que nunca era suficiente. Mas era exatamente esse caos que dava ao lugar sua mística.

O declínio e a decadência do Mau Cheiro começa no fim dos anos 70. A cena cultural se desloca, novos bares surgem, e o Mau Cheiro perde força. Era o fim do bar que foi palco de uma geração que marcou a imprensa, a cultura e virou referência obrigatória da cena underground carioca.

O Mau Cheiro também era palco de brigas de bar que, com Jaguar, viravam piada. Teve a vez em que um sujeito mais exaltado tentou levantar a mão contra ele. Jaguar, bêbado que nem um gambá, soltou: “Se você me bater, eu te desenho pior do que já é!” — a ameaça foi suficiente para encerrar o conflito em gargalhadas.

Com o tempo, as histórias do Mau Cheiro e de Jaguar se misturaram de tal forma que ficou impossível separar a história da lenda . Era como se uma precisasse da outra para existir. Então, como disse John Ford (diretor de cinema) no filme ‘O Homem que Matou o Facínora’: “Se a lenda se torna fato, publique-se a lenda”.

A clientela começou a migrar para outros redutos, mas as histórias permaneceram. Reza a lenda, que o último ato folclórico foi quando Jaguar e um grupo de amigos, ao saber do fechamento, levaram a placa do bar como lembrança. Até hoje ninguém sabe onde ela foi parar.

Quando o Mau Cheiro fechou, dizem que Jaguar comentou: “Acabou-se o cheiro, ficou a saudade”. E ficou mesmo.

Ediel Ribeiro (RJ)

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Ediel Ribeiro é carioca. Jornalista, cartunista e escritor. Co-autor (junto com Sheila Ferreira) do romance "Sonhos são Azuis". É colunista dos jornais O Dia (RJ) e O Folha de Minas (MG). Autor da tira de humor ácido "Patty & Fatty" publicadas nos jornais "Expresso" (RJ) e "O Municipal" (RJ) e Editor dos jornais de humor "Cartoon" e "Hic!". O autor mora atualmente no Rio de Janeiro, entre um bar e outro.

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