Coluna

Sobreviver no BR é aventura

“Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, eu nasci brasileiro,
Eu sou do Rio de Janeiro.”

 

- Athaliba, a música “Partido alto” de Chico Buarque espelha a frustração acompanhada de humilhação de brasileiros que sonham com vida melhor ao tentar entrar nos EUA e são detidos e deportados. Nos dois primeiros meses de 2022 já se contabiliza 12 vôos com deportados em Confins, no Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Os deportados, inclusive em família, fazem a viagem algemados. O governo estadunidense afirma que esse procedimento é “questão de segurança”. Isso tudo após sangrar nas mãos dos coiotes na transação para cruzar as fronteiras. O desencanto foi manifestado por uma das deportadas, resumindo o sentimento de todos, ao dizer que “queríamos vida melhor, pois nosso país está pobre, não dá para viver”.

Deportada que sofreu maus-tratos  protege a  identidade com o passaporte encobrindo. (Reprodução imagem de TV)  

- Marineth, sobreviver no Brasil é uma tortuosa aventura. A desigualdade econômica é absurda e sustenta o caos no qual a larga maioria da sociedade está mergulhada. Estima-se que apenas (imagine o tamanho da desproporção) 1% da população detém toda a riqueza do país. E é dona de terras improdutiva maior que Sergipe, o menor estado do Brasil. O desemprego atinge sempre índice acima de 10 milhões de brasileiros. A miséria leva milhares de pessoas a “morar” nas ruas das grandes cidades. A saúde é uma doença crônica. O analfabetismo é alimentado pela precária educação. Não existe política pública de habitação. Exemplo disso foi a tragédia das chuvas em Petrópolis, que matou centenas de pessoas, recentemente. Em 2011, lá, morreram quase 1.000 pessoas e até hoje os corpos de quase 100 vítimas permanecem soterrados. Quero discordar da opinião da deportada de que o “nosso país está pobre”. Essa justificativa dela sobre a infrutífera travessia para tentar alcançar o irreal “sonho americano” é reprodução recorrente de alienados. O Brasil é rico. Mas, a desigualdade está na cantiga de roda infantil “De marré, marré” que diz: “Eu sou pobre, pobre, pobre/De marré, marré, marré./Eu sou pobre, pobre, pobre de marré deci/Eu sou rica, rica, rica/De marré, marré, marré/Eu sou rica, rica, rica De marré deci”.

- Phorra, Athaliba, vou te interromper, pois como diz uma colega, se deixar o seu discurso vira uma conferência. E saiba que só conheço a cantiga popular “Atirei o pau no gato”. Ocê sabia que desde 2019, quando o big shot Donald Trump, presidente dos EUA, passou a acossar com fúria a imigração, até fevereiro último, Confins já recebeu 58 vôos com centenas de deportados? No confinamento das famílias separadas, em celas com homens, mulheres e crianças até a volta à pátria amada, “algumas mulheres exibiam os seios para os guardas para ganhar mais comida”, revelou uma deportada. Ela ficou cinco dias sem tomar banho e escovar os dentes, recebendo garrafinha de água de 500 ml/dia, se alimentando de maçã, laranja e burrito. Saiu do Brasil com os pais e a irmã e, em 29 de janeiro último, chegou aos EUA. A família foi escrachada, teve seus pertences jogados no lixo, ao ser presa. Chorando, disse que a situação foi “muito humilhante”.

- Marineth, a deportação é chaga aberta para sempre na vida dessas pessoas, envolvendo adolescentes e crianças, e que sofrem maus-tratos dos guardas da imigração.

- Sim, Athaliba. Outra deportada entre 211 pessoas, com 90 menores de idade, contou que crianças doentes sequer receberam medicação. A triagem dos menores para comprovação de paternidade e maternidade é feita pela Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Minas Gerais, junto com a Polícia Federal e comissários de Pedro Leopoldo e de Belo Horizonte. O nosso frágil Ministério das Relações Exteriores assiste a tudo como se tivesse venda nos olhos. E com postura de convivente com a situação sempre afirma que “o Brasil vem manifestando sua sensibilidade ao tema em alto nível e matém sua expectativa de um desenlace adequado” É tudo balela. Prevalece o argumento do governo dos EUA de que “com deportados algemados se evita brigas durante os vôos ou mesmo sequestro do avião”. 

- Marineth, que caia logo por terra a ilusão do irreal american dream. E que nós, brasileiros, possamos formar imenso cordão para construir o poder popular no Brasil. Essa é a alternativa que nos resta. Como diz Chico Buarque, “pois quem tiver nada pra perder/Vai formar comigo imenso cordão/E então quero ver o vendaval/Quero ver o carnaval sair”. Quer o poder popular?

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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