Opinião

BRANQUITUDE

Art: Geledés

Depois de quase dois anos estávamos aos poucos voltando à boêmia, ainda pisando em ovos, alguns mais ressabiados que outros e cenas um pouco ridículas, ou necessárias, são flagradas o tempo todo:  passar álcool em gel no copo lagoinha antes de tocar nele, ficar duas horas sentado sem relar na mesa do bar, usar luvas cirúrgicas em um sol de 32 graus e etc. 

Tiago tinha trazido Sabrina, sua namorada, pra conhecer a turma pela primeira vez e Pretinha havia trazido John, um primo de grau distante. Tirando os dois forasteiros, éramos todos pretos. Sete pessoas pretas e duas brancas. 

Eu me sentia à vontade, estava com os meus, podia baixar a guarda, pensava eu. Pensava errado! Entre um copo de cerveja e outro, John que é LGBTQIA+ e dentista em uma cidadezinha próxima daqui, retira do bolso uma cartela de cigarros, o isqueiro e o estende para que eu o acenda, finjo demência. Estende para outra pessoa preta que também o ignora, mas insiste nessa tentativa até finalmente ser “servido” por algum de nós. É claro que ele pulou a Sabrina. Em outro momento ele solta: 

- Amiga, eu nem devia ter saído de casa hoje. Coloquei minha louis vuitton à toa e não ganhei nenhum elogiozinho, ou será que é a minha beleza que é uma maldição, meu deus? Só pode ser isso, porque eu tenho tudo o que um homem preto pode querer mas o Bruce não me nota. 

Não satisfeito em ser apenas mais uma pessoa naquela roda de amigos, e querendo ser bajulado de qualquer forma, retira da carteira um maço de notas de cinquenta e de cem reais, as dispõe sobre a mesa e finge conta-las, se abanando com elas de vez em quando. Sem êxito, vira-se pra mim e pergunta: 

- Amiga, olha pra mim. Olha pra mim de corpo todo, o que você acha mais bonito em mim? Meu cabelo está com um balanço especial hoje, eu usei um produtinho importado, quer passar a mão nele?

O que faz John achar que eu gostaria de tocar em seus cabelos loiros e escorridos? A brancura lhe garantiu um lugar confortável nessa sociedade, e a sua condição burguesa lhe fez acreditar que pudesse ser tratado com distinção, de tal modo que aonde quer que vá ele se coloca como um ser especial, e quando isso não acontece o “eu” se fragiliza, é quando ele constata que: “seria melhor nem ter saído de casa” 

Estávamos quase findando o rolê, Sabrina e eu ainda não havíamos tido a oportunidade da prosa, e eis que surge a ocasião. Ela me conta que é Jornalista de um grande veículo midiático e que está escrevendo uma matéria sobre as origens da nossa cidade. Historiadora que sou, fico entusiasmada e peço para saber mais. Ela edifica a figura dos heróis bandeirantes que “civilizaram essas terras”, mas diz que não deixará os negros de fora: “foi a mão de obra desses cativos que fez todo o trabalho sujo”. Tenho curiosidade em saber suas fontes, ela cita as cartas de expedicionários, jesuítas e outros paladinos da Coroa. Questiono se ela já parou pra ouvir os Quilombolas de nossa região, que vivem nessas terras antes mesmo do ato de fundação. Sabrina perde a doçura e muda o tom de voz:

- Você tá querendo dizer que eu estou contando uma história específica, que a minha pesquisa trata apenas de um ponto de vista? Eu trabalho com fatos, querida, e nesses fatos tem lugar sim pro negro, mas ele é coadjuvante, aceita isso.

Respiro fundo e percebo novamente que não temos 1 minuto de paz nesse Brasil. A branquitude é mansa quando asseguramos seus privilégios, expressos na corporeidade branca ou na hereditariedade que segundo eles “desbravaram e civilizaram o mundo”, mas ao duvidarmos por 1 segundo de sua condição especial, fim de amizade. E antes que me peçam para não generalizar, deixo o convite para que a branquitude reflita sobre seus comportamentos, como pensam, dizem e se relacionam com seus iguais e o seu outro (negros e negras).

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