Coluna

A CEGUEIRA, MEU PERSONAGEM DE 2019

Silvia Grecco e o filho, Nickollas, foram os vencedores do prêmio Fan Award 2019 da Fifa(Foto: Marco Bertorello / AFP)
Silvia Grecco e o filho, Nickollas, foram os vencedores do prêmio Fan Award 2019 da Fifa(Foto: Marco Bertorello / AFP)


Procurar, durante o ano que passou, um personagem não é uma tarefa fácil. Têm-se para todos os gostos. Algumas vezes ele não é real, é uma interpretação sobre os acontecimentos. No caso, os meus escolhidos fizeram parte de uma imagem que me impressionou, e são reais, e que valem uma interpretação. Em um jogo do Palmeiras, uma mãe leva o seu filho, cego, para assistir ao jogo. Ele não consegue ver, é claro, e a mãe narra a partida, os lances, isso no meio da torcida. Imagino que o menino, não só pelas palavras da mãe, mas pela vibração dos torcedores em volta, sentiu o clima da partida.

A FIFA, inclusive, fez uma homenagem aos dois.

Achei, como direi, uma espécie de alento nos dias difíceis e históricos que estamos vivendo. Difíceis porque estamos lidando com uma relação interpessoal bem complicada e, politicamente, acontece o mesmo. Espero que, no futuro, a sociedade rejeite as divisões baseadas no ódio, e não queira que elas voltem, assim como não queremos conviver mais com uma realidade hiperinflacionária, de três dígitos anuais.

Uma recente pesquisa do Datafolha diz que a influência dos discursos de ódio ou de cegueira sobre os usuários do Whatsapp estão menores: Uma luz na escuridão? O que nos leva a concluir que uma parte dos usuários, acostumada a compartilhar e a desenvolver textos sem nenhuma fidedignidade e adepta de um discurso estúpido, mesmo tendo diante de si discursos baseados em fatos concretos e análises próximas da realidade, ainda os rejeita, e procura as notícias que estão mais afetas à sua necessidade brutal e desconectada com a realidade.

Estabelecendo um paralelo entre a situação daquela mãe que guia o filho cego, integrando-o ao mundo, e daqueles que preferem se manter em um mundo onde a cegueira é uma satisfação e uma zona de conforto, podemos concluir que o resultado é óbvio: cegueiras são muitas.

Essa forma de cegueira pode sentir a vibração em volta, ser orientada sobre a realidade que está acontecendo, e continuar assim por ser mais reconfortante do que encarar a vida. O mito da caverna se encaixa, perfeitamente, nesse caso. E nele, também a cegueira ou a resistência em encarar a realidade são iguais. E mais ainda, nas palavras de Raul Seixas, “ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Tirar suas próprias conclusões sobre tudo e demonstrar ter opinião formada sobre tudo são uma forma de estar cego. Não querer a informação real, não ter senso crítico, principalmente sobre si mesmo, aquela covardia em admitir o erro, não se reinventar são formas de cegueira.

Vendo aquela mãe narrando o jogo para seu filho, um apaixonado por futebol, e ela mais ainda sobre seu pequeno torcedor, isso tem muito a nos dizer. Quando recebemos o sinal de alerta sobre a notícia falsa dita por um amigo ou lida com todas as letras, negá-la ou reproduzi-la, simplesmente porque ela é tudo aquilo que pensamos e queremos que seja realidade, é não ouvir a voz do narrador interno que temos e pular de alegria, mesmo sabendo que é um gol contra ou do adversário.

Ao final, a derrota é inevitável.

Posso dizer que se uma situação qualquer se estabelece, alguém está ganhando com ela. Qual o sentido em espalhar a cegueira, nessa forma de viver onde a mentira ganhou o pomposo nome de pós-verdade? Até a mentira perdeu seu lugar.

Terra plana, nazismo de esquerda, louvar a Jesus com gestos de arma em punho e outras maluquices nos leva a pensar que alguns, realmente, estão mais perdidos do que cego em tiroteio. E aqueles que tentam manter a mente em ordem são as vítimas das balas perdidas, lançadas a esmo por cegos e oportunistas.

Parabéns para aquela mãe que guia seu filho nessas artimanhas emocionantes da arte de viver. A nossa? É a mão na consciência e muita vontade de ler, estudar e aprender. Lugar comum: pior cego é aquele que não quer ver, mesmo em tempos de telas iluminadas. E a preguiça intelectual é uma forma bem peculiar de cegueira.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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