De celeiro cultural do país, o Rio de Janeiro torna-se a capital da violência, sob a política do ódio e do abate. Cantada no mundo como cidade maravilhosa, os cariocas vivem retraídos, temerosos e confinados. Os mais de 80 tiros disparados por soldados do Exército, no fuzilamento do carro do músico Evaldo Rosa dos Santos, e a morte dele, consequentemente, aumentam o pânico e o pavor de quem se expõe ir às ruas. O trem é tão doido que o estímulo das autoridades ao ódio sobrou para o jornalista Carlos De Lannoy, da TV Globo, depois de fazer a cobertura do caso para o Fantástico. No seu perfil, no Instagram, ele recebeu a seguinte ameaça: “Se vc escolher falar merda e defender bandido; é escolha sua. Se for errado paga com a vida! Mexeu com o Exército, assinou sua sentença! Sua família vai pagar! Aguarde cartas!”
Em resposta ao perfil @ErikProcopio, apagado depois pelo ameaçador no Instagram e no Twitter, o jornalista respondeu que “você vai pagar por essa ameaça. O que vc fez não é apenas uma afirmação vergonhosa, infeliz e lamentável, mas um crime previsto em lei. Aguarde”. O ameaçador, Erik Procópio, é do Rio Grande do Norte e formado em Direito, e se diz fã do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e apoiador de Jair Bolsonaro (PSL) e da ditadura militar. Após ver que a ameaça repercutira, ele pediu desculpas ao jornalista, dizendo que o comentário fora apagado e que De Lannoy “é um grande profissional”.
Há dias ele fez a seguinte postagem: “Como é triste acompanhar conhecidos aqui no Twitter, uns comunistas de merda, defendendo um posto de vista, sem ao menos saber o significado das palavras de ordem que ecoam pelas suas bocas! Ou seria bundas! Viva 1964! O povo pediu! Quem não errou, não sofreu!”. E fez críticas às investigações pela apuração do brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes e à deputada federal Maria do Rosário (Pt-RS): “Que apelação esse negócio de Marielle. Pq não procuram saber de quem foi a ordem para tentar mandar matar o presidente Bolsonaro?”.
A violência absurda (como se a violência pudesse ter termômetro de nível de brutalidade) ocorreu em Guadalupe, no domingo, quando o músico ia participar de chá de bebê e se deparou com uma patrulha militar. Não houve abordagem. Os soldados do Exército disparam dezenas de tiros. E Evaldo dos Santos morreu cravado de tiros diante do filho David, sete anos. Os soldados, segundo a viúva, Luciana Oliveira, que é enfermeira, riram, após o assassinato. Ela chamou os soldados de “assassinos” e eles debocharam o tempo todo. Os tiros foram dados repentinamente e Luciana sentiu o sangue do marido espirrando nela.
O sogro do músico, Sérgio Gonçalves, foi atingido pelos tiros e está internado em hospital da Zona Oeste. E Luciano Macedo, que também foi alvejado pelos disparos quando tentava socorrer a família no carro, se encontra entre a vida e a morte, depois de submetido a cirurgia. Os soldados apresentaram várias versões e dirigentes do Comando Militar do Leste disseram que “uma patrulha do Exército flagrou um assalto e que o carro roubado tinha a mesma cor, mas outra marca e modelo, um Honda City”. Portanto, bem diferente do carro da família do músico, um Ford Ka. E em nota o CML afirmou que “dois criminosos haviam atirado contra os militares e que eles responderam à injusta agressão”.
Exame da perícia no local, segundo agente da Delegacia de Homicídio, constatou que os militares que mataram o músico e feriram outras pessoas, metralharam o carro com a família de trás para frente. Os tiros atingiram as vítimas pelas costas. Os militares atiraram com fuzis. O resultado da perícia será encaminhado ao Exército, que determinou a prisão em flagrante de 10 dos 12 militares envolvidos no assassinato.
Além de vídeos de moradores da região da Vila Militar criticando a ação dos soldados nas redes sociais, diversos comentários foram postados nos rodapés de reportagens sobre o assunto. Um deles diz que “esse é o projeto de Moro, Bozo e Witzel: atirar para matar, sem que seus agentes sejam punidos por conta da excludente de ilicitude que eles querem acrescentar na lei. Mas, tirando a bancada da bala, boa parte do Congresso, que tem a cabeça no lugar, não vai deixar passar”. Outro comentário: “Bozo deve estar consternado, devastado interiormente pela prisão dos militares”. Mais outro comentário: “Isso é revoltante. Aviltante. Atentatório contra toda uma sociedade, toda uma nação de civilidade”.
Outro comentário recolhido diz que “há uma carnificina em curso. Os agentes do Estado se sentem autorizados a matar indiscriminadamente e paira, sobre tudo isso, uma licenciosidade sob a forma de omissão das autoridades públicas”.
Para finalizar, entre dezenas de comentários a ação dos militares, outro observa que “Quer dizer que ‘o Exército afirmou seu compromisso com a transparência e condenou excessos ou abusos da corporação’. Excessos ou abusos? Isso é um completo desastre! O general Edson Pujol deveria vir a público pedir desculpas à sociedade brasileira em nome do Exército e garantir que crimes inexplicáveis como esse não ficarão impunes, nem a família da vítima sem reparação. Me sinto ultrajado! Enojado até... É uma vergonha para as forças armadas essa nota fria soltada à imprensa. Agindo como se fosse um acontecimento banal, um pequeno deslize. Perderam a noção? E depois ainda querem se dizer os mais patriotas!”.
O governador do Rio, Wilson Witzel, que implanta atiradores de elites (snipers) nas ações policiais, faz exercícios com soldados do Bope - Batalhão de Operações Especiais - e sente-se, emocionalmente, fascista. Em postagem no seu perfil @wilsonwitzel, 19/2, ele escreveu que “comecei o dia treinando com os caveiras e depois tomei café no Bope. Hoje temos agendas importantes em Brasília! Bom dia!”.
Portanto, leitores d’O Folha de Minas, a ação de abate, chancelada pela política do ódio e da intolerância, está escancarada. Nem São Sebastião, cravado de flechas no peito, padroeiro da Cidade do Rio de Janeiro, divisa no horizonte tempos de justiça, solidariedade e fraternidade. O Rio está de ponta cabeça, literalmente.
LENIN NOVAES* é jornalista e produtor cultural. Co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS
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