Internacional

Chico Buarque recebe prêmio Camões e diz que Bolsonaro "teve fineza de não sujar o diploma"

Honraria foi concedida ao artista em 2019, mas não foi entregue porque o então presidente Jair Bolsonaro (PL) se recusou a assinar o título

O cantor, compositor, dramaturgo e escritor Chico Buarque, de 78 anos, recebeu o prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa, em uma cerimônia nesta segunda-feira (24), em Sintra, Portugal. A honraria foi concedida ao artista em 2019, mas não foi entregue porque o então presidente Jair Bolsonaro (PL) se recusou a assinar o diploma. Nesta segunda, Chico recebeu o prêmio diretamente das mãos do presidente Lula (PT).

O prêmio é concedido, em parceria, por Brasil e Portugal. Além do diploma, Chico levou a quantia de 50 mil euros de cada um dos países, algo em torno de R$ 650 mil. Em seu discurso no Palácio de Queluz, onde Dom Pedro I nasceu e morreu, Chico disse que se reconforta ao "lembrar que o ex-presidente [Jair Bolsonaro] teve a rara fineza de não sujar o diploma do prêmio".

"Conforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando espaço para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo esse prêmio menos como honraria pessoal e mais como desagravo a tantos autores e artistas humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo."

Chico também comemorou ter recebido o prêmio da véspera do aniversário da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura fascista em Portugal no dia 25 de abril de 1974. Ele se referiu ao governo Bolsonaro como “um tempo em que o tempo parecia andar para trás”.

"Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em que os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás", discursou.

O compositor lançou seu primeiro livro de ficção, "Fazenda Modelo", em 1974. Três anos mais tarde, publicou o livro infantil "Chapeuzinho Amarelo". O primeiro romance, "Estorvo", foi lançado em 1991. Ele também escreveu "Benjamin", em 1995. Nos anos 2000, o artista lançou "Budapeste" (2003) e "Leite derramado" (2009). Seu último romance foi "Irmão Alemão", de 2014.

Para o teatro, Chico escreveu as peças "Roda Viva" (1968); "Calabar" (1972); "Gota D’Água" (1974), e "Ópera do Malandro" (1978).

O artista recebeu o prêmio na presença dos presidentes do Brasil e de Portugal, Luiz Inácio Lula da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro luso, António Costa, dos ministros da Cultura dos dois países, Margareth Menezes e Pedro Adão e Silva, e do presidente do júri, o escritor português Manuel Frias Martins.

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Chico Buarque recebe prêmio Camões / REUTERS/Rodrigo Antunes - 

Presidentes discursam

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva também discursou. O petista destacou que a cerimônia de entrega corrige “um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos”.

"Hoje, para mim, é uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso porque esse prêmio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi. Todos nós sabemos por quê. O ataque à cultura em todas as suas formas foi uma dimensão importante do projeto que a extrema direita tentou implementar no Brasil", ressaltou o chefe do Executivo.

Já Rebelo de Sousa comparou o artista brasileiro a Bob Dylan, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2016. Segundo ele, Dylan é celebrado, mas sua obra é principalmente musical. Já Chico Buarque, além da música, também fez obras elogiadas na literatura e no teatro.

"Se todos considerassem o cancioneiro de Chico parte integrante do nosso patrimônio, em patamar que poucos se comparam, haveria de sentir alguma dissonância? Mesmo aqueles que alegam deméritos técnicos para contestar o prêmio e as opiniões de Chico, contestam as ideias de quem deu a cara contra a ditadura?", questionou.

O prêmio

O Prêmio Camões de Literatura foi criado em 1988 pelos governos brasileiro e português, com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa cuja obra tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural lusófono. O vencedor é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países lusófonos (Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste).

Em 34 edições, o prêmio contemplou nomes como os portugueses António Lobo Antunes e José Saramago, o moçambicano Mia Couto e os brasileiros Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Raduan Nassar.

O discurso de Chico Buarque na íntegra

"Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.

Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade.

Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar.

Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.

O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.

Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por avós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI.

Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais.

Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.

Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde - sou leitor e admirador.

Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.

Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade.

Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste no Brasil como um pouco por toda parte.

Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.

Muito obrigado!"

Fonte: Jornal do Brasil

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