Coluna

OS ANJOS (PARTE II)

São Paulo - Estava no bar do hotel, bebendo um café, ao lado de um grande piano preto, quando a Sheila apareceu na recepção. Ela estava linda, metida num vestido preto colado ao corpo.

Parecia estar claramente precisando de um bom café. Estava cansada. O semblante apagado. Sem brilho. Minutos depois, estávamos os dois tomando café da manhã no restaurante do hotel. 

No chão, adesivos com a logomarca do hotel delimitam a distância entre os hóspedes na fila. Os atendentes e os garçons usavam luvas e máscaras de proteção.

Sheila pediu pães, queijo, frutas, ovos mexidos e café. Eu pedi a mesma coisa. Menos as frutas. Sentamos numa mesa de canto, guardando uma distância segura dos outros hóspedes. 

Era sábado de manhã, o dia da nossa visita aos “Anjos da Noite”.

Aproveitamos o dia para um passeio pela cidade. Compramos livros e uma garrafa de vinho.

Almoçamos num aconchegante bistrô, numa rua tranquila de Moema. Sheila pediu uma salada verde e eu fricassê de frango. Voltamos ao hotel e, depois de tomarmos a garrafa de vinho, descansamos até às 18h.

Nos encontramos - na estação do metrô da Vila Madalena - com a Gisele, que é voluntária e vai nos apresentar ao grupo. Pegamos a via expressa para a pista e, de lá, seguimos de carro para Itaquera, zona leste de São Paulo, onde fica a sede dos Anjos da Noite.

Gisele, irmã da Sheila, é uma loira animada e super simpática. Falando pelos cotovelos, Gisele dirige rápido com uma das mãos e, com outra, manuseia o telefone tentando colocar o endereço no Waze.  

Ela parecia estar claramente com dificuldades com o aplicativo. A jovem, finalmente, aproveitou uma parada para abastecer e inseriu o endereço do nosso destino, impedindo que eu e a Sheila tivéssemos um troço.

Ediel Ribeiro
Ediel Ribeiro - Arquivo pessoal.

A viagem foi tranquila. Chegamos a sede dos Anjos da Noite às 20 h, aproximadamente. Kaká Ferreira, presidente do grupo, nos recebeu em sua sala, falou das atividades do grupo e nos mostrou que já estava tudo pronto para os trabalhos daquela noite. 

As 800 quentinhas que serão distribuídas já estão em uma das kombis. Nas outras duas, biscoitos, água, roupas, agasalhos e cobertores. Tudo pronto, vestimos as camisetas dos Anjos da Noite e seguimos em direção ao centro de São Paulo.

Os Anjos da Noite se preocupam com o perigo de contágio nas ruas. Eles nos alertaram - a imprensa e voluntários - para usar álcool-gel, máscaras e luvas  de proteção. Disseram-nos para andarmos juntos e evitar o contato com os moradores de rua.

O trabalho do grupo começou pelas ruas desertas do centro. As kombis estacionaram em ruas próximas ao Mercado Municipal e a 25 de Março, no centro comercial da capital. Logo que as kombis dos Anjos da Noite estacionaram, uma pequena multidão surgiu das sombras e se precipitou loucamente para perto, na esperança de garantir o jantar. 

As calçadas estavam lotadas. No meio deles, os voluntários iam distribuindo quentinhas, biscoitos e água. 

Agora, olhando para as ruas cheias de moradores de rua, apontei para uma criança que brincava com uma das voluntárias.

- Aquela criança - eu disse - vai sofrer muito durante o frio da madrugada.

- Ele já está acostumado - disse a mãe do menino. 

Aquilo doeu em nós.

As ruas começaram a ficar lotadas de gente. Homens, mulheres, velhos, jovens: vinte, trinta ou mais, alguns deles cambaleando, bêbados. A bebida e a droga, às vezes, são companhia e alívio para alguns. É uma cena fantástica e triste - pessoas dormindo, enrolados em cobertores ou dentro de caixas de papelão, atropelando-se e lutando por garrafas de cachaça ou por uma pedra de crack. 

As ruas são sujas. Pessoas estranhas e hostis rondavam à nossa volta. Aquela era uma experiência nova para mim e a Sheila. Ela parecia um pouco nervosa. Procurei alertá-la: 

- Algumas pessoas com quem você vai falar, de agora em diante, poderá estar bêbado ou drogado. São pessoas que parecem muito agradáveis no início mas podem repentinamente atacar você sem nenhum motivo. 

Não demorou muito:

Bem no meio de toda a ação, um morador de rua foi bastante agressivo com uma das voluntárias. O homem, aparentemente drogado, arrancou a quentinha das mãos da jovem e atirou no meio da rua, espalhando a comida pela pista. Em seguida, gritando, atirou a garrafa de água na parede, estourando-a e molhando alguns de nós. Isso adicionou uma certa tensão à situação, uma vez que o pobre homem estava claramente fora de controle.

- Calma! Deixem ele! Tá tudo bem. - disse um dos voluntários.

Alguns metros dali, um homem agachado atrás de uma banca de jornal acendia uma maldita pedra de crack. Sheila olhou para ele, nervosamente, sem coragem de oferecer-lhe água ou comida. 

- Por que eles se drogam? Preferem a droga à água ou à comida - observou, triste.

Seguimos em frente pela 25 de Março. Em frente à Galeria Pagé, encontramos mais um grupo de moradores de rua, dormindo na calçada, enrolados em velhos cobertores ou dentro de caixas de papelão ou plásticos.

As ruas próximas ao Mercado Municipal estavam cheias de pessoas se movendo em todas as direções. Uns homens descarregavam grandes caminhões e outros transportavam mercadorias distribuídas em caixas dentro de carrinhos lotados. Eram feirantes montando suas barracas para a feira, na manhã seguinte.

Nessa altura, já estávamos mais calmos. Enquanto a Sheila distribuía água e comida, eu conversava com alguns moradores de rua. A grande maioria era oriunda do norte e nordeste do país, principalmente dos estados do Ceará, Bahia e Paraíba. Encontrei alguns mineiros, também.

Entramos pela madrugada. Os voluntários continuaram pelas ruas escuras, em seu trabalho humanitário. Acordavam os moradores de rua e distribuíam as quentinhas. A maioria agradecia. Aquela, para a maioria, provavelmente, era a primeira e única refeição do dia.

No caminho, vislumbramos outro problema que teríamos de enfrentar. Chegamos à "Praça do Rato”. O nome, fazia jus ao lugar. Centenas de ratos infestam a praça. Os moradores de rua dividem o espaço com os roedores. Alguns ratos chegavam passar por cima das pessoas que dormiam enrolados em velhos cobertores. Nós, e os outros voluntários tínhamos que fazer um certo malabarismo para desviarmos dos roedores e entregarmos as quentinhas. Para piorar, alguns dos moradores de rua tinham algum problema de mobilidade - uma senhora dormia agarrada à cadeira de rodas, com medo de ser roubada. 

No meio a todo esse caos, um casal fazia sexo, enrolado em cobertores. Sem perceber, um dos voluntários sacudiu o casal para oferecer água e comida. A mulher puxou o cobertor, deixando exposta a bunda do homem. Rindo, pegou a quentinha e agradeceu. O homem também pegou a sua e uma garrafa de água. Aparentemente, eles não davam a mínima para nós ou para o que estava acontecendo na rua.

- Cobre essa bunda! - gritou a mulher, rindo.

Eu e a Sheila rimos, também. 

Daquele ponto em diante, o grupo seguiu sem nós. A noite ainda não tinha acabado para os voluntários dos Anjos da Noite;  mas nós precisávamos voltar ao hotel. 

No caminho de volta, alguma coisa nos dizia que saímos dali mais humanos e melhores do que quando chegamos.

Estávamos exaustos. Tudo ainda estava muito vivo em nós. Com sorte, dormiríamos algumas horas. 

Meu voo para o Rio de Janeiro sairia às 9h30.

 

*Ediel Ribeiro é jornalista e escritor. Viajou à São Paulo para cobrir as ações do grupo Anjos da Noite, na madrugada paulista, para o jornal O Folha de Minas.

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