Na estrutura organizacional de Itabira, em Minas Gerais, a instituição responsável pela política cultural, tendo como patrono Carlos Drummond de Andrade, está solta, desgarrada, isolada. O espetaculoso status de fundação não lhe confere participação igualitária na divisão do bolo orçamentário, com demais eixos da máquina pública. A cultura é valorizada ou maquiada? Os eventos culturais são pílulas rejeitáveis ou têm compromisso com a memória da história da cidade? O que fica à posteridade? A ocasião, após reabertura do Museu de Itabira, é oportuna para aprofundar a discussão. Que se abre a cortina e que os principais atores entrem em cena.
O fato de ter nomenclatura de Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade, e não Secretaria Municipal de Cultura, simplesmente, como é título usual em municípios e estados, como, também, é a denominação federal, serve para desqualificar a área que representa na sociedade. Isso equivale dizer, absurdamente, que cultura não é tão essencial como saúde e educação à vida.
Normalmente, quando o órgão responsável pela formulação e implementação da cultura municipal é designado fundação, é sabido que os cargos de direção são preenchidos por pessoas que não tem qualificação específica da área e que a nomeação nada mais é do que pagamento de dívida de gratidão política. O cargo de dirigente é dado à pessoa, ou por ela representado, que tenha contribuído financeiramente à campanha eleitoral, como decisivo cabo eleitoral.
Não tenho dúvida que esse processo vicioso e maligno à população só pode ser revertido com atuação intransigente dos segmentos culturais, através das entidades organizadas da sociedade civil representativas do setor ou de movimento reunindo artistas de diversas áreas e tendências artísticas e cidadãos. É preciso sustentar com força e determinação o fato de que a cultura é fundamental, importante e decisiva para a formação da cidadania e desenvolvimento da sociedade. Pois cultura distribui saber e compartilha conhecimento, além de prazer, alegria e divertimento. O Conselho Municipal de Políticas Culturais de Itabira tem que sair da inércia.
É sabido que os políticos carreiristas, destituídos de compromissos com as questões essenciais da população, dizem que cultura não dá votos. Alegam que os votos são garantidos, principalmente, nas áreas da saúde e da educação. Por isso, em campanhas eleitorais, prometem reformas das escolas, melhoria da qualidade da merenda escolar, construção e reforma de postos de saúde, aquisição de equipamentos hospitalares, ampliação de leitos, concursos para aumento do quadro de servidores e etc. e tal.
É na área da saúde, educação, aonde se pratica corrupção, através de superfaturamentos em obras, compras de remédios e materiais de serviço geral, além de influências políticas. Em alguns municípios que não tem organização da população em entidades representativas, mesmo quando tem, a indicação para direção de escolas, hospitais e postos de saúde é política. E as pessoas que necessitam dos serviços - como matrícula escolar e atendimento médico -, às vezes têm que obter senha com os políticos picaretas, sejam eles vereadores ou deputados.
E qual é a principal diferenciação entre secretaria e fundação? Na questão da verba orçamentária. No caso de secretaria, a participação no orçamento é mais distinta, quase que se igualando as outras secretarias. Em se tratando de fundação, o subsídio é o mínimo necessário para manter a necessidade básica de funcionamento. Tem sido pura ilusão a condição de autonomia política e financeira de qualquer órgão com a nomenclatura de fundação.
À fundação, por exemplo, o político-mor municipal diz que poderá fazer captação de verbas, sem limite, junto às empresas privadas e órgãos públicos para execução das políticas e ações culturais “de acordo com a conveniência da direção”. Pode ser que “a ordem” divise campo infinito e fértil para obtenção de recursos. Mas, depois de apelos, agenciamentos e solicitações negadas, em investidas realizadas em curto prazo, dirigentes de fundação percebem a falácia à qual foram induzidos e enganados de forma conveniente.
As atribuições culturais são iguais à fundação quanto à secretaria de Cultura. O conceito está em formular e realizar, com a participação da sociedade civil, o Plano Municipal de Cultura, executando as políticas e as ações culturais definidas; implementar o Sistema Municipal de Cultura, coeso aos Sistemas Nacional e Estadual de Cultura, articulando os atores públicos e privados no âmbito do município, estruturando e integrando a rede de equipamentos culturais, descentralizando e democratizando a sua estrutura e atuação; promover o planejamento e fomento das atividades culturais com visão ampla e integrada na área da cidade, considerando a cultura como setor estratégico para o desenvolvimento local; valorizar todas as manifestações artísticas e culturais que expressam a diversidade étnica e social do município; preservar e valorizar o patrimônio cultural do município; pesquisar, registrar, classificar, organizar e expor ao público a documentação e os acervos artísticos, culturais e históricos de interesse do município; manter articulação com pessoas públicas e privadas visando à cooperação em ações na área da cultura.
E, ainda, é fácil encontrar por aí recomendações de compromissos em categorias distintas. Ou seja: organização de atividades do calendário cultural da cidade, realização ou apoio a eventos e projetos da sociedade, desenvolvimento de ações culturais em conjunto com políticas públicas e prestação de serviços culturais permanentes. Em geral, os órgãos de cultura são encarregados de cuidar das atividades do calendário cultural, constituído tradicionalmente pelas festas religiosas (como Semana Santa, Padroeiros da Cidade e Natal), civis (como o aniversário da cidade), populares (como carnaval, ciclo junino e réveillon), sociais (como o 1º de maio, Dia da Mulher, Dia da Consciência Negra, Parada Gay), festas ligadas aos ciclos econômicos locais (as agropecuárias, por exemplo) e os festivais, feiras e salões de arte (música, teatro, dança, circo, cinema, artes visuais, fotografia, artesanato, literatura, etc.).
Os eventos são considerados provisórios, ocasionais, sejam eles realizados pelo próprio poder público ou pela sociedade. As atividades permanentes envolvem serviços e ações como criação e manutenção de espaços culturais (teatros, museus, bibliotecas e centros culturais); registro, proteção e promoção da memória e do patrimônio cultural (material e imaterial); apoio à produção, distribuição e consumo de bens culturais (leis de incentivo e outras formas de fomento); incentivo ao livro e à leitura; intercâmbio cultural (como a promoção de circuitos culturais); formação de recursos humanos (cursos técnicos, artísticos e de gestão cultural) e programas socioculturais (voltados para públicos específicos: crianças, adolescentes e idosos; pessoas com deficiência; populações prisionais, asilares e hospitalizadas; populações sem teto, sem terra, assentadas e faveladas; populações indígenas e afro-brasileiras, entre outros).
Num plano mais alto, as políticas culturais são chamadas a colaborar com o planejamento urbano (revitalização de áreas degradadas, espaços culturais em áreas de intervenções urbanas) e com o aumento econômico local (investimentos na economia da cultura).
Em geral, os governantes costumam apreciar mais os eventos que geram popularidade, e menosprezar as atividades permanentes, que, no fundo, são mais importantes, pois fortalecem a identidade e a diversidade cultural local, e atuam na formação contínua dos cidadãos (cidadania cultural). A importância do Plano de Cultura, como Lei Municipal, explicita prioridades da cultura e quais programas, projetos e ações devem ter recursos assegurados na Lei Orçamentária Anual.
É fácil encontrar situações que órgãos de gestão da cultura em alguns municípios têm várias características: secretaria exclusiva; secretaria em conjunto com outras políticas setoriais; setor subordinado a outra secretaria; setor subordinado ao prefeito; ou uma fundação pública. Há municípios que não têm nenhuma estrutura institucional dedicada à política cultural, e essa, de todas, é a pior situação.
Na maioria dos municípios, a cultura é parte de uma secretaria maior, responsável também por setores como educação, turismo, lazer e esporte. Em geral, quando a cultura está junto com a educação, ela é considerada marginal, porque a educação tem mais recursos e exigências legais que acabam absorvendo o gestor.
Por outro lado, quando vinculada ao turismo, ao esporte e ao lazer, a cultura costuma ocupar lugar de destaque, a não ser que o município seja caracteristicamente turístico. Nesse caso, a cultura costuma ficar a reboque do turismo, fornecendo-lhe eventos atrativos. O mesmo costuma acontecer quando a cultura é vinculada diretamente ao prefeito. Nesse caso, ela é vista como uma área produtora de eventos destinados a fortalecer a imagem do Poder Executivo. Quando o setor é apenas departamento subordinado a outra secretaria a situação é ainda pior. Nesse caso, a cultura costuma ter pouquíssimos recursos humanos e materiais à disposição.
O que se pretende é que os municípios tenham um órgão específico para a cultura, que é sinal evidente de que a administração valoriza o setor. Assim, o órgão específico é Secretaria de Cultura.
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o concurso nacional Poesias de jornalistas, homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS.
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