Coluna

Uso anormal da propriedade no direito da vizinhança

O homem é um ser gregário, ou no clássico adágio, um animal social. Vive das inter-relações que firma com seus semelhantes, e se organiza em sociedade para enfrentar as vicissitudes de sua frágil existência. Um homem, sozinho, na natureza, é presa - em um grupo, é predador.

O homem transforma sua natureza quando vive em sociedade, e dos vínculos que trava com seu semelhante, surgem a cultura, o desenvolvimento, a civilização.

Mas a vida em sociedade criou uma figura singular, digna de veneração para alguns, e ilimitada fonte de sofrimentos para outros: o vizinho.

Vizinho é aquele que lhe empresta o açúcar, mas, também, é aquele que coloca lixo na frente de casa; é aquele que cuida do seu cachorro quando você viaja, mas é aquele que dá festas barulhentas no meio da semana até de madrugada.

Mas o homem, diante de problemas corriqueiros como o da lida com o próximo, do alto de sua razão, criou o Direito para regular a vida do grupo social, e limitou seu próprio campo de atuação para garantir a paz da vida em comum. O preço a ser pago, em razão da vida social, afinal, é o Direito.

O vizinho que constrói aquele muro tapando nossa visão da paisagem, que ouve música até alta madrugada, que passeia nu no quintal (logo abaixo da nossa janela), que pega as frutas da árvore que plantamos próximo à cerca, foi considerado, pelo Direito, um preço alto demais a ser pago pela vida em sociedade, de tal sorte que a experiência humana criou um sistema de direitos e obrigações para disciplinar o relacionamento entre as pessoas que vivem próximas entre si: o Direito de Vizinhança.

No Brasil, o Direito da Vizinhança herdou forte influência do Direito Romano, com todo o seu pragmatismo e funcionalidade. O conceito de função social da propriedade, incluído em nosso ordenamento jurídico no fim do século passado, também influenciou a maneira como disciplinamos nossas relações com nossos vizinhos.

Para se conhecer um pouco sobre o Direito que rege as relações entre vizinhos, conforme estabelecido no ordenamento jurídico nacional, deve-se ter em mente, em primeiro lugar, que existem limitações ao uso da propriedade.

Ninguém pode causar prejuízo a outrem, se abrigando em um pretenso direito de fazer o que quiser com a propriedade que é sua. O proprietário, ou possuidor, vizinho também tem direitos a serem respeitados.

Por princípio fundamental do direito de vizinhança estabelecido na lei brasileira, o proprietário ou possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam provocadas pela utilização da propriedade vizinha.

Analisando essa disposição, vê-se que o legislador nacional escolheu a segurança, o sossego, e a saúde como bens da vida que merecem proteção especial nas relações entre vizinhos. Em suma, as atividades do vizinho que se refiram à própria propriedade estão limitadas àquelas que não interfiram com esses valores legalmente protegidos.

Tais interferências devem, em contrapartida, ser toleradas quando forem justificadas pelo interesse público, mas, ainda assim, mesmo nesse caso, o causador dessas interferências deve pagar ao vizinho atingido uma indenização que a lei define como "cabal".

Tais disposições legais limitam o uso anormal da propriedade, que abarca múltiplas situações. Uma das mais freqüentes é a do prédio que ameace ruína. Nesse caso, o proprietário ou possuidor tem o direito de exigir do dono do prédio vizinho que esteja nessas condições sua demolição ou sua reparação, bem como, pode exigir que lhe seja prestada caução pelo risco iminente.

Também anormal está o uso do terreno baldio que se infesta de ratos, e oferece risco à saúde dos vizinhos, de forma que afronta tanto o Direito de Vizinhança quanto as normas pertinentes à Vigilância Sanitária.

Esses casos, assim como muitos outros semelhantes, podem ensejar medidas judiciais protetivas ao vizinho atingido, ou mesmo ações indenizatórias. Porém, ações dessa natureza não são tão comuns quanto o largo número de cidadãos brasileiros poderia fazer supor que existissem. Esse fato tem raízes não só na característica pacífica do brasileiro médio, mas também, e principalmente, no desconhecimento que ele tem da lei e do seu direito.

Dr. Daniel Mendes Ortolani é advogado atuante nos ramos do Direito Civil, Empresarial e Tributário, autor de diversos artigos, e formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

E-mail: daniel@ortolani.com.br.

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