Coluna

Inclusão de quilombos, já!

- Marineth, a escancarada desigualdade social à qual sobrevivemos no estado democrático de direito serve de barganha política ao viciado sistema eleitoral. Salta aos olhos em muitos dos currais eleitorais pelo interior do país, mais visível que nas grandes metrópoles. A política de favor por poste-de-luz, bica d’água, calçamentos de ruas, construção de escolas e de moradias, etc. e tal, nos enfiam goela adentro desde o golpe que gerou a proclamação da República, em 1889.

- Ocê tá querendo dizer o quê com essa explanação, Athaliba? Vá direto ao ponto!

lula
Lula, na campanha eleitoral, cabalou votos no Quilombo Arturos, em Contagem, MG. Portanto, agora que ele cumpra a promessa de titularização das terras. Foto Ricardo Stuckert.

- Marineth, seguinte: o Lula, no uso da funesta tradição da política de favor, pediu votos no quilombo Arturos, em Contagem, Minas Gerais, na campanha de 2022. Foi então que lembrou já ter ido naquela comunidade quando presidente, no 2º mandato. Voltou a falar do quilombo, mês passado, ao lançar o Plano Safra para Agricultura Familiar. Resumo da ópera na observação dele: “A gente reconheceu um quilombo na cidade de Contagem; ano passado lá voltei; passados tantos anos e a gente não conseguiu legalizar o quilombo”. A história fustigou a memória dele.

- Athaliba, depois quero falar do ato da proclamação da República, mencionado por ocê, lá em cima. Antes, porém, no entanto, é preciso contar que o quilombo Arturos é considerado uma das comunidades originais do Brasil. Existe há mais de 130 anos. É reconhecida pelo Iepha-MG - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais - como Patrimônio Imaterial. E vivem lá e no entorno 180 famílias, herdeiras dos ancestrais africanos, com cultura e folclore próprios. Como se vê, trata-se da legítima originalidade de formação do povo brasileiro.

- Marineth, falta regularização fundiária oficial. A sociedade foi certificada como quilombola pela Fundação Cultural Palmares, em 2004. É o 1º passo no processo de titulação. Na etapa seguinte, o Incra - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - entra em cena. E aí se elabora o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, seguido de publicação e homologação pelo governo. Vem depois desapropriação se preciso for e, por fim, a regularização fundiária.

- É complicado esse emaranhado processo burocrático, Athaliba. É por isso que João Pio de Souza, gestor da associação que administra o quilombo tem cobrado agilidade do presidente Lula para a titulação de Arturos. Ele reclama de investidas de especuladores imobiliários.

- Marineth, atualmente existe 494 territórios quilombolas delimitados e 4.859 comunidades fora de terras delimitadas. Há mais de 1.3 milhão de pessoas autodeclaradas quilombolas. Dados são do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -, revelando que a região Nordeste concentra mais de dois terços daquela população. Como ocê se referiu à especulação imobiliária, saiba que o quilombo Mesquita, em Brasília, Distrito Federal, é alvo dos gananciosos por terra.

- Como é que é isso, Athaliba, na capital do Brasil? Desembucha. Desnuda o assunto!

- O caso, Marineth, envolve, inclusive, o ex-presidente José Sarney. O quilombo Mesquita abriga descendentes de escravizados desde o século 18. E quase 300 anos depois, moradores estão ameaçados pela expansão de Brasília e a valorização das terras na região. Sarney é sócio de imobiliária que adquiri terrenos no local a preços módicos. Procurado pela reportagem da BBC News Brasil, ele não quis comentar o caso. Perdeu a oportunidade de se explicar, no silêncio.

- Athaliba, por que cargas d’água a questão de grilagem de terras atinge José Sarney?

- Marineth, em respeito à memória do amigo e jornalista José Louzeiro, maranhense como ele, abdico discorrer sobre intrincado assunto. Habitantes daquele quilombo tiveram importante contribuição na construção de Brasília. Sugiro ocê lê Quilombo Mesquita - História, Cultura e Resistência, de Manoel Barbosa Neres. Ele é pesquisador e morador da comunidade, da qual se origina operários que edificaram o Catetinho, casa projetada por Oscar Niemeyer para abrigar o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Agora me fala sobre o ato da proclamação da República.

- Em termos de história, Athaliba, a derrubada de Dom Pedro II e consequente implantação do sistema presidencialista ocorreram “ontem”, há exatos 134 anos. Os detalhes do ato tão ainda latejando na memória dos historiadores. Alguns contam que o marechal Deodoro da Fonseca foi tapeado por golpistas a proclamar a República, já que ele era amigo fervoroso do imperador.

- E daí, e daí, Marineth?

- E daí, Athaliba, que “todo cuidado é pouco para não cair do cavalo”. Isso se refere ao fato do Deodoro, doente, ser compelido a montar no cavalo e “liderar” o golpe militar. Sem analogia, que quilombolas não percam esse fato de vista na luta que travam pelo legítimo direito às terras.

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

Comentários


  • 13-08-2023 15:40:44 Julio Oliveira

    Brilhante crônica Camarada Lênin!

  • 11-08-2023 15:37:48 Jose Ribamar

    Excelente é oportuna crônica Lenin . O meu abraço