Coluna

Clamor por reforma agrária

Bela Gil
Bela Gil clama por reforma agrária, que ainda causa muitas mortes em conflitos espalhados pelo imenso Brasil entre trabalhadores rurais e latifundiários. (Foto: Divulgação)

- Athaliba, o clamor da chef de cozinha Bela Gil por reforma agrária, no Café com o MST, contrastou com a live da cantora Kelly Key ensinando a musa fitness Gracyanne Barbosa como fazer sexo anal e o vídeo compartilhado pela funkeira Anitta no qual exibiu a coleção de vibradores, em bate-papo com o “influenciador” Léo Picon. Infelizmente, a esmagadora maioria dos internautas deu preferência aos vídeos da Anitta e da Kelly, em detrimento do apelo da filha do compositor e cantor Gilberto Gil. Artista é artista, né? Mas, claro que tem dignas exceções.

- Marineth, o contraste é realmente absurdo. Não se aplica à distância entre o Oiapoque, fronteira do Amapá com a Guiana Francesa, e ao Chui, na divisa do Rio Grande do Sul com o Uruguai. O que é relevante e dá maior importância, amiga, é o posicionamento da Bela Gil. Enfim, entre as frivolidades que infestam as redes sociais, nessa pandemia do COVID-19, ressurge no cenário nacional um assunto de interesse geral da população brasileira, sempre travado pela elite dominante. No nosso imenso e próspero Brasil por natureza impera o latifúndio.

- É verdade, Athaliba. A conversa no Café com o MST reuniu a chef Bela Gil, a enfermeira Susane Lindinalva da Silva, do setor de saúde do MST; e João Rodrigues, dirigente nacional do MST, que fez relato como o movimento se articula nesses tempos de pandemia do COVID-19. A mestre em Ciências Gastronômica pela Universidade do Slowfood na Itália, a UNISG; ativista da alimentação saudável e escritora, manifestou aos pequenos agricultores “muito obrigado, gratidão pelo trabalho que vocês fazem; pois se o campo não planta, a cidade não janta; vocês tão no caminho certo. A reforma agrária é a reforma mais importante que a gente precisa no Brasil; a gente vive sem muita coisa, mas não vive sem comida. Com a concentração de terra absurda no Brasil, o acesso à alimentação também é desigual”.

- Marineth, a concentração de grande quantidade de terra no Brasil nas mãos de poucas famílias é um absurdo. Tem gente que se apropriou de terra com área territorial maior que alguns pequenos estados do país, como Sergipe, por exemplo. Muitas são as terras improdutivas.

- Athaliba, o João Paulo, observou que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, “libera os venenos agrotóxicos”, mas “não libera os R$ 500 milhões do Plano Safra Emergencial”, conforme aprovação do Congresso Nacional via Programa de Aquisição da Agricultura Familiar. Destacou que “o MST tem programa nacional que é uma política de solidariedade, que aprendemos com o povo cubano, com o princípio de não dividir o que sobra, mas dividir o que tem”.

- Marineth, a reforma agrária regula e promove a justa divisão de terras. O nosso Brasil tem o dever de reparar séculos de uma distribuição fundiária injusta que perdura até os dias de hoje, o que causa uma disparidade muito grande entre detentores de “grandes porções de terras” (rótulo latifundiários) e pessoas que sequer tem onde morar e produzir.

- Pois é, Athaliba. Pesquisa do IBGE concluiu que o total de estabelecimentos ou terras destinadas à agricultura apresenta montante de 330 milhões de hectares, equivalente a 36% de todo o território nacional do Brasil. Isso implica dizer que, dos 330 milhões de hectares de terras agropecuárias, aproximadamente 141,9 milhões de hectares são latifúndios.

- Sim, Marineth. Isso revela a obrigação de uma reparação estrutural e histórica por parte do Estado.

- Athaliba, a luta pela reforma agrária é árdua, intensa, no enfrentamento com os grandes latifundiários. A Pastoral da Terra contabilizou, em 2017, a morte de lideranças do movimento na luta pela terra em 22% das 71 mortes no campo, sendo que em 2018 o percentual foi 54% dos 24 assassinatos. O integrante da coordenação executiva nacional da Comissão Pastoral da Terra, Ruben Siqueira, diz que “se no passado a matança era indiscriminada, inclusive com chacinas, os alvos agora são líderes ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”.

- Marineth, levantamento da pastoral mostra que 92% das mortes no campo por disputa de terra seguem sem solução, desde 1985. São cerca de dois mil assassinatos, de sem terras a indígenas e, de cada cinco mortes registradas, duas ocorreram no Pará. Lá, em 17/4 de 1996, 19 trabalhadores rurais foram assassinados, no massacre de Eldorado dos Carajás.

Sepultamento de 19 trabalhadores rurais mortos no massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 17 de abril de 1996. (Foto: João Roberto Ripper)

- Athaliba, ainda me entristeço com o assassinato covarde e brutal do líder ambientalista e seringueiro Chico Mendes, em 22/12 de 1988, em Xapuri, no Acre. A reserva extrativista que leva o nome dele sofre com o desmatamento ilegal para criação de gado. E vida de gado!!!

- Marineth, também a missionária estadunidense Dorothy Stang simboliza a luta da reforma agrária. Aos 73 anos foi assassinada com seis tiros em fevereiro de 2005 em Anapu, Pará, no local do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança. Quantos mártires vítimas da luta por reforma agrária o Brasil vai produzir? Amiga, no Dia da Terra, 22 de abril, vou declamar o poema “Podes?”, do poeta cubano Nicolás Guillén, no megafone, em apelo pela reforma agrária, já!.

“Podes vender-me o ar que passa entre teus dedos
E golpeia teu rosto e desalinha teus cabelos?
Talvez possas vender-me cinco moedas de vento?
Ou mais, talvez uma tormenta?
Acaso me venderias ar fino – não todo –
O ar que percorre teu jardim de flor em flor
E sustenta o vôo dos pássaros?
Dez moedas de ar fino, me venderias?
O ar gira e passa na asa da mariposa.
Ninguém o possui. Ninguém!
Podes vender-me céu?
Céu azul por vezes, ou cinza, também às vezes,
Uma parte do teu céu, o que comprastes, pensas tu,
Com as árvores do teu sítio, como quem compra o teto com a casa?
Podes vender-me um dólar de céu?
Dois quilômetros de céu, um pedaço,
O que puderes, do “teu” céu?
O céu está nas nuvens. Altas passam as nuvens;
Ninguém as possui. Ninguém!
Podes vender-me chuva?
A água que forma tuas lágrimas e molha tua língua?
Podes vender-me um dólar de água da fonte?
Uma nuvem grávida, crespa e suave como uma ovelha, me venderias?
Ou, quem sabe, água chovida das montanhas?
Ou água dos charcos, abandonada aos cães?
Ou uma légua de mar, talvez um lago?
A água cai e corre. A água corre. Passa.
Ninguém a possui. Ninguém.
Podes vender-me terra?
A profunda noite das raízes, dentes de dinossauros,
A cauda espersa de longínquos esqueletos?
Podes vender-me selvas já sepultadas, aves mortas,
Peixes de pedra, enxofre dos vulcões,
Milhões e milhões de anos em espiral crescendo?
Podes vender-me terra?
Podes vender-me?
Podes?
A tua terra é terra minha, todos os pés se apóiam nela.
Ninguém a possui. NINGUÉM!”

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

Comentários


  • 17-04-2020 15:00:56 JOÃO BRITO

    Oh, Lenin, que porra-louquice real, heim? Peço autorização para mais uma vez republicar um texto seu, de interesse verdadeiramente social, e atual, para o atual contexto do corona, no jornal itabirano TEMPOÉTICA, aquele que republicou sua cronica, ALUCARD, há uns 02 anos, lembra-se? Eu te enviei.