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Vamô vadiá nesta lezeira

Vamô vadiá nesta lezeira desafia os amantes de livros entenderem de imediato qual é a temática da publicação. Será que o título induz a considerar que a obra literária se trata de um romance? Será que o título remete a livro de ficção? Ou ainda se é de autoajuda, religião, contos, poesia, história infantil, negócios e biografia? O título chama a atenção nos stands de livrarias.

Qual nada. O livro de Eduardo Pontin e Francisca Souza é uma publicação que aborda tradicional dança do Piauí. O lançamento é da Editora Corisco e vendido pela Livraria Entrelivros, com preço do exemplar a R$ 50,00. Além da venda no site da livraria, os interessados, na região Sudeste, podem adquirir através do correio eletrônico (e-mail) edicoespontin@gmail.com.

A importância da publicação transcende a sua comercialização no mercado literário. A obra abriu registro no IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - para a lezeira se tornar Patrimônio Cultural do Brasil. A exemplo do que aconteceu com o samba - Lei Nelson Sargento -, que tem a livre atividade garantida das escolas de samba e a realização dos desfiles.

A lei 14.567/23, sancionada pelo presidente Lula, é de autoria da deputada federal Maria do Rosário, do PT-RS. Trata-se da parlamentar ofendida em sua dignidade pelo então deputado federal Jair Bolsonaro. Ele, condenado a indenizá-la pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ -, disse que “ela é muito feia e jamais a estupraria”, no Facebook e na página dele no Youtube.

O livro dá passo importante para tornar a manifestação popular Patrimônio Cultural do Brasil. Divulgação - 

O prefácio do livro Vamô vádia nesta lezeira é de Ricardo Augusto Pereira, historiador do IPHAN, que é uma autarquia federal criada em 1937, vinculada ao Ministério da Cultura, tendo a responsabilidade pela preservação e divulgação do patrimônio nacional. A princípio considerei captar observações dele para explicar a produção e finalidade do livro. Mas, a ele cabe a tarefa:

“No meio da pandemia de COVID-19, no ano de 2021, momento em que morriam milhões de pessoas pelo mundo, eu tentava, em vão, me isolar para evitar contato com o vírus. Na ocasião, recebi um telefonema inusitado: o ilustre paulistano pesquisador do Samba, Eduardo Pontin, assistira ao filme Lezeira, produzido mais de dez anos antes, interessando-se pela expressão cultural e pelas possibilidades de reconhecimento.

Conversamos brevemente sobre a extensão da Lezeira, conhecida por mim apenas na comunidade Quilombola Custaneira, onde o Mestre Naldinho, engenhosamente, a partir dos ensinamentos do saudoso Zé de Cecíla, e de sua mãe, Dona Rita Maria, havia transformado em um batuque.

Na época da produção do documentário, com efeito, a Lezeira vivia moribunda, quase que completamente em estado de memória, com a viva exceção de Custaneira. Nos demais lugares, o rádio, a TV, as redes sociais, os paredões de som haviam se imposto e não se ouvia mais falar.

Todavia, Eduardo Pontin, junto com a jornalista e fotógrafa Francisca Sousa, e o pequeno Raul, deslocados de São Paulo para Floresta do Piauí, uma cidade com pouco mais de dois mil habitantes, em meio ao turbilhão provocado pela epidemia, presenciaram uma roda de Lezeira.

A partir daí, vejo que se instalara, “fixa como … talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica”, uma ideia. E faço minhas as palavras de Braz Cubas, de Machado de Assis: “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa”, pois tem o poder de criar dos loucos aos fortes.

Talvez a ideia fixa, mas principalmente o amor, nos concederam a maravilha Vamô Vadiá nesta Lezeira, livro que demonstra a dignidade e a vivacidade da Lezeira. Eduardo e Francisca não apenas entrevistaram, mas conviveram com os mestres e com as mestras de Lezeira, para produzir o considerável material etnográfico e histórico que ora se apresenta.

Cotejando a bibliografia produzida sobre as cantigas, as danças e os versos populares, desde o século XIX, conseguiram demonstrar que a Lezeira está entre os maiores arquivos vivos de quadras populares, documentadas durante séculos pelos intelectuais daqui e d’além-mar.

Eduardo e Francisca partiram em uma verdadeira expedição em busca dos mestres e das mestras de Lezeira, espalhados por diversas cidades, povoados e comunidades quilombolas do Piauí. Muitos dos quais, há 10 ou 20 anos não praticavam a Lezeira, esquecida pelas comunidades, realimentada pela curiosidade de pesquisadores, preservada nas cabeças e nas almas dos cantadores e cantadeiras.

Percorreram até mesmo lugares e biografias de puxadores que há muito haviam partido, como Zé Marcelo, do lendário Sobrado Grande. De forma genial, Chiquim Ferreira, de Floresta do Piauí; Dona Iraci, do Tombador; Dona Rita, da Custaneira; Seu Simplício, de Roça Nova; João Biato, de Boa Fé; Gabiru, da Floresta; Antônio Cabelim, do Baixão do Umbuzeiro, dentre outros, aparecem lado a lado de nomes como Sílvio Romero e Franklin Távora, na tradicional ação oral e escrita de preservação, transmissão e recriação de versos e quadras. Muito provavelmente, inúmeros versos e quadras documentados por escrito exclusivamente neste livro, renitentes nas cabeças dos cantadores, também são oriundos dos séculos passados.

Trata-se do mais aprofundado e abrangente trabalho sobre a Lezeira já produzido no Brasil. Na década de 1970, Noé Mendes descreveu com poucas palavras a expressão cultural; antes, Fontes Ibiapina chegara a relatar danças de roda existentes na região; alguns outros importantes trabalhos pesquisaram a Lezeira de forma localizada. Vamô Vadiá nesta Lezeira espraiou-se, configurando-se como importante registro para a posteridade, na busca incessante das narrativas de mestres e mestras, a maioria com a idade avançada, mas todos manifestando o prazer de cantar a Lezeira, resultando no almejado milheiro quadras populares.

Alguns aspectos, acredito, ainda serão muito discutidos em pesquisas futuras, sobretudo a relação da Lezeira da roça, dos negros, dos indígenas, dos mestiços e de brancos pobres do interior, com os batuques, pagodes e baiões, cuja extensão pretérita, no Piauí, era muito maior do que imaginamos hoje. Para Noé Mendes, a Lezeira era dança de negros, depois caracterizada pelo mesmo autor como muito mais indígena do que afro, mas ainda assim chamada de pagode.

Embora corrigindo em obra posterior, o trabalho do folclorista demonstra a relação e a confusão históricas existentes entre essa dança de roda e os batuques. Os mestres e mestras de Lezeira com quem conversei, na companhia de Eduardo Pontin, na Semana Santa de 2023, falavam da Lezeira e eram exímios conhecedores dos batuques, pagodes e baiões. Muitas vezes, onde havia uma Lezeira, cantava-se e dançava-se também o baião, como os promovidos pelo Sr. Ângelo Torres, em Floresta do Piauí.

Assim como nos exemplificam os versos das quadras populares, os bens culturais comumente são recriados, misturados, sincretizados, integrados, porque os detentores normalmente não se preocupam com purismos. José Ramos Tinhorão relata, desde José de Anchieta, por razões diversas, indígenas dançando com tamboris e violas; quadrinhas que misturavam português e tupi.

Quando chegamos à casa de Seu Pedim de Atrás da Serra, na Semana Santa, suas filhas nos receberam com um banquete, com muitos doces e com muitas gargalhadas. Lembraram-se do paulista perdido nas estradas empoeiradas do Piauí, carregado pela Francisca em uma motocicleta. Pelo esmero com que foi produzido, Vamô Vadiá nesta Lezeira mereceu o reconhecimento do Prêmio Sílvio Romero de Monografias de Folclore e Cultura Popular de 2022. Dos mestres e mestras de Lezeira do Piauí, já possui o afeto, sobretudo pela forma respeitosa e alegre com que foi produzido, com o grande intuito de valorização dessa arte centenária”.

Na contracapa do livro, Zé Dantas, produtor cultural e sonoplasta, expõe o fundamento da lezeira:

'A Lezeira é uma brincadeira de terreiro que envolve uma ligação firme e afetiva entre o ser humano com a terra onde ele vive. Esse povo do sertão que passa o dia na labuta diária da roça encontra o seu alento na diversão dos terreiros, dançando e cantando versos tirados do juízo, tendo como únicos instrumentos sonoros os pés, as mãos e a voz.

Os puxadores de versos costumam ter a voz vigorosa, de timbre estridente, feita para troar o mais forte possível, enquanto as respostas vêm de um coro uníssono de vozes masculinas e femininas com timbres variados, que respondem aos versos quase sempre carregados de um humor levemente malicioso, provocativo e engraçados.

O que muito me chama atenção é a dança dos casais brincantes, sempre tirando som do chão com pisadas firmes e fortes ao ponto de levantar poeira sem perder o ritmo, rodando e cantando. Se cumprimentam enquanto passam um pelo outro, entrelaçando os braços, vão se divertindo e distribuindo afetos e muitos sorrisos noite adentro, chegando muitas vezes a terminar a festa somente quando a barra do dia amanhece.

As cantigas me remetem as minhas melhores lembranças, dos terreiros da minha infância, enquanto as pisadas me levam a ancestralidade. É como se aquelas pisadas também chamassem o chão para entrar na brincadeira e daquela poeira que sobe emanasse todo o vigor e a energia da qual aquelas pessoas necessitam para continuar de bem com a sua terra”.

Já Monique Augras, na “orelha” do livro enfatiza:

“Iniciava-se a aliança dos povos afropindorâmicos celebrados pelo piauiense Nêgo Bispo [1959-2023], filósofo e poeta. O “chão da música” haveria de sustentar muitas formas de viver e fazer, da vida, algo prazeroso. Com o passar do tempo, a língua dos colonizadores viria propor cânones de expressão poética, canções e quadras, cuja referência até hoje transparece na fala dos mestres e mestras, cantadores da Lezeira. O capítulo central do livro nos leva ao encontro deles. Temos o enorme prazer de conhecê-los, graças aos vívidos retratos de autoria de Francisca, pelo relato de suas vidas, na leitura de suas falas. Por meio de QR code, temos acesso às gravações recolhidas nos seus respectivos terreiros.

Nunca é demais lembrar que, no campo, o pesquisador há de ser, por ele mesmo, o instrumento de pesquisa. Para compreender o outro, é-lhe necessário enfrentar a sua própria alteridade, abrindo-se a afetos, sentimentos, emoções. Em sua essência, pesquisa de campo é convivência. É claro que esse aspecto não exime o pesquisador dos cuidados e rigores exigidos por um trabalho científico. Mas a intersubjetividade propicia um nível de acesso privilegiado ao mundo de cada personagem.

Eduardo e Francisca não fogem de se implicar pessoalmente, quando falam de sua emoção ao entrevistar Mestre Chiquim Ferreira, 84 anos: ‘Chiquim começou a cantar e dançar, sozinho, demonstrando como era o passo da Lezeira de antigamente. E de repente nos sentimos numa barca navegando no tempo, balançando com os tremores de emoção que Chiquim transbordava com seus olhos repletos d’água e, então, dentro da sala do velho cantador, inexplicavelmente coube o Piauí inteiro’.

Nesse ponto, importa sublinhar que pesquisa de campo é caminho de mão dupla. Triste seria se o pesquisador, com a satisfação do dever cumprido, encerrasse ali mesmo a sua contribuição. Campo é vida, e vida é feita de trocas.

Mal concluída a primeira fase da pesquisa, Eduardo e Francisca se empenharam, junto com o IPHAN, para iniciar processo de registro da Lezeira como Patrimônio Cultural Brasileiro. Mas não ficaram nisso: patrimônio cultural é feito de gente. Aos poucos, trabalhando arduamente, conseguiram que mais da metade dos cantadores e cantadoras com quem conviveram, fossem contemplados com o título de Patrimônio Vivo do Estado do Piauí.

Louvados sejam! Também louvados nossos amigos! Louvado esse povo do interior do Piauí, que lhes permitiu recolher mais de mil quadras! Louvado seja este livro que, à guisa de apoteose, nos brinda com verdadeiro monumento de oralitura, como diria Patrick Chamoiseau, notável escritor martinicano.

Os autores, com peculiar minúcia, ainda se deram ao trabalho de classificar as cantigas conforme eixos temáticos. Podemos agora nos deleitar, ao sabor do humor ou do acaso, com ‘versos para se rir’, ‘versos do querer-bem’, ‘versos para pensar’, até mesmo ‘verso ruim pra estragar’ (por que não?), ou simplesmente ‘cantigas e cantorias tradicionais’.

Resumindo: Não há nada como florir um lugar com a vida que uma expressão cultural como a Lezeira é capaz de proporcionar.

Com livro dedicado por inteiro ao mundo da Lezeira, Eduardo Pontin e Francisca Sousa dão brilhante contribuição ao conhecimento da cultura nordestina. Melhor dizendo, da cultura brasileira”.

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