Coluna

Anciã nua protesta em Alucard

O poema da indignação junto à máquina do trem, na praça. (Foto: Lenin Novaes)
O poema da indignação junto à máquina do trem, na praça. (Foto: Lenin Novaes)

 

Nua, literalmente, nua. Os lábios cobertos por batom roxo, a cor da saudade. Nos cabelos soltos, tiara rosa em crochê, com pérola branca aplicada no centro da flor bordada. Com pés descalços, em sentido anti-horário, circulava a locomotiva que simboliza a mineradora Yale, na praça da entrada de Alucard, observada pelo poema “O maior trem do mundo”, do poeta Antônio Crispim, numa placa de ferro. Depois de contar mentalmente cada seis voltas ao redor da máquina, ela fazia a leitura da mensagem no banner sustentado em tripé, contendo desenho macabro de destruição. A multidão se aglomerava no lado contrário da escadaria, incrédula, contemplando espetáculo tão raro. Bombeiros, policiais e um padre não conseguiam demovê-la da atitude inusitada, singular, excepcional. Nem mesmo alguns parentes e amigos.

- Que trem doido é esse, Athaliba?

- Trata-se de fato histórico, Marineth, que abalou os alicerces da sociedade retrógrada de Alucard.

- Como assim, Athaliba?

- Na referida praça, Marineth, tombada pelo patrimônio histórico de Alucard, está exposta a “Maria Fumaça”, máquina de trem a vapor que puxava dezenas de vagões carregados de minério de ferro explorado pela Yale na década de 1940. O vereador que acumulava a função, na época, com a de presidente do sindicato dos trabalhadores mineradores, dentro da sua divina ignorância e oportunismo, convenceu seus pares na Câmara a aprovar o Projeto de Lei 52/2018 que nomeia o local de Praça do Minerador. Justificou que “é homenagem aos mineradores profissionais que desde a fundação da Yale, em Alucard, vêm contribuindo para o desenvolvimento da economia local e também do país”.

- Esse vereador parece idiota, heim, Athaliba. Como pode homenagear o próprio algoz?

- Ele se comprometeu ainda, Marineth, em arranjar recursos financeiros junto às empresas privadas para a construção de estátua de mineradores “homenageando profissionais que são a força do progresso de Alucard, num museu da mineradora a céu aberto”.

- Aí é demais, Athaliba. Assim o trem descarrila na curva do ‘S’ com dezenas de vagões de minério de ferro caindo e sepultando Alucard, sem dó nem piedade.

- A praça, Marineth, nos sábados, domingos e feriados, serve de espaço recreativo para o povo e visitantes. Famílias que promovem piqueniques. Rapazes e crianças jogam bola, soltam pipas e, inclusive, tem torneio de peteca entre atletas dos bairros. À noite vira motel, abrigando casais em automóveis. Os quadrigêmeos de Selmita, que compõem dois casais, foram gerados nas trepadas dela com Romeu, na praça. Assim, também, como lá no matagal do Pico do Amor, onde muitas crianças alucardeanas foram concebidas. Tem muita gente que adora fazer sexo ao ar livre nesses locais.

- Mas, Athaliba, qual foi o desenrolar da mulher completamente nua na praça?

- A mulher, Marineth, vai à missa das 9 horas, aos domingos, e integra grupo de estudo da teologia da libertação que mostra que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres e especifica que a teologia para concretizar essa opção deve usar também as ciências humanas e sociais. Ela segue sempre as conferências do mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, dominicano que, em 1962, foi escolhido dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica. Preso duas vezes pela ditadura civil-militar (1964-1985), conforme registro nos livros Cartas da prisãoDiário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira e Batismo de sangue, transportado para o cinema e premiado com o Jabuti de 1983, trabalhou na organização das Comunidades Eclesiais de Base, no Espírito Santo, até o final de 1970, depois de sair da prisão.

- Mas, Athaliba, como essa mulher saiu da encrenca em que se meteu?

- Como Dona Edwiges não apareceu na missa, Marineth, as pessoas se entreolhavam com sinais de preocupação. Afinal, aos 88 anos de idade, mesmo gozando de boa saúde, ela já tinha ultrapassado a chamada linha de perspectiva de vida do brasileiro, estimada em pouco mais de 70 anos, atualmente. De repente, não mais que de repente, um coroinha mostrou ao pároco um vídeo circulando nas redes sociais. Alguns dos fiéis e integrantes da juventude católica, com expressão de assombro, se fixavam no vídeo nos celulares, que alcançava repercussão nacional. A missa foi interrompida e todos foram para a praça.

Já eram mais de 11 horas, quando D. Edwiges, atendendo apelo de uma neta, exigiu a presença da repórter Magnólia da Rádio Arco-íris para fazer comunicado ao vivo à população. Ela chegou à praça em pouco tempo, monitorando o caso pelo celular. E, serena, tranquila, a anciã fez discurso que alcançou os municípios da Região do Médio Piracicaba, além de outras dezenas de cidades de Minas Gerais.

“Queridos conterrâneos, meu ato pode ser considerado extremo. Pensei em começar a conversar com vocês pedindo perdão. Mas, perdão por quê? Até hoje, durante toda minha vida, fui obediente às leis de Deus e submissa à vontade dos homens. Nem meu marido Diocleciano me viu plenamente nua, como vocês estão me vendo agora. Esse corpo pátria que gerou sete filhos gentis, hoje, desgastado. Vergonha? Não! Tenho vergonha da omissão e da fraqueza que carrego de não ter reagido contra a exterminação da nossa cidade, profanada com a destruição da sua identidade, o Pico do Cauê, pela exploração sem trégua do minério de ferro. Aqui se mistura essa máquina que simboliza a destruição e, junto dela, o poema da indignação. Hipocritamente, fingimos ignorar essa brutal contradição. Estou nua para depurar a covardia e me redimir da falta de luta em defesa da minha cidade. Ganhei consciência de cidadã e de luta ao integrar o movimento das Mulheres Aguerridas de Alucard, liderado por Anabela. Imploro a vocês, conterrâneos, que não deixem Alucard morrer. Vamos reagir às investidas desumanas do capitalismo selvagem. Lutem com a Anabela: http://ofolhademinas.com.br/materia/30945/aguerridas-de-alucard-prontas-agrave-luta”.

Depois, D. Edwiges vestiu o roupão que colocara perto do banner e foi cercada pelos familiares. A multidão, comovida, se dispersou, rapidamente, e a praça ficou num silêncio sepulcral. Logo a seguir as badaladas do sino da igreja anunciavam a metade daquele domingo inesquecível.

- E qual era a mensagem no banner, Athaliba?

- Tinha, Marineth, um desenho macabro de Alucard destruída e a última estrofe do poema “O maior trem do mundo”, onde o poeta Antônio Crispim apregoa:

“Lá vai o trem maior do mundo.

Vai serpenteando, vai sumindo.

E um dia, eu sei, não voltará.

Pois nem terra nem coração existem mais”.

 

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS.

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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