Após quase um ano de comunicação apenas virtual, Valentina chega na casa da família para as festas de fim de ano. Os abraços apertados e demorados, lhe preenche completamente, percebe que se lançar ao inesperado é fascinante, mas não existe nada tão bom quanto estar em casa. Mas existe algo diferente no ar, Valentina enxerga alguma coisa nos olhos do seu povo. Alguma coisa opaca, que não soube nomear. Decide investigar.
Enquanto Manuella, sua irmã de 12 anos lhe ajuda a desfazer as malas, Val aproveita pra ouvir as histórias da pequena e observa que a modalidade de aulas remotas plantou um desânimo doído na garotinha. Aquela vontade de devorar a vida numa só mordida foi se diluindo, diluindo...
Quando acompanha o pai ao supermercado, observa que a tal coisa no olhar, também está lá. Descobre que ele sofre de ansiedade e de insônia, e que toma três ansiolíticos diferentes por dia. A causa de tanto mal estar psíquico? A política, a economia, a crise climática, o desmonte da educação, o sucateamento da saúde, e tudo isso atravessado pelo racismo estrutural... em uma palavra, ausência de futuro!
Esperava encontrar alguma fortaleza na mãe, que agarrada em sua fé sempre segurou a família nos momentos mais difíceis, o pai lhe conta, porém, que depois do vazamento de um escândalo na Igreja em que frequentara, ela nunca mais foi a mesma. Valentina constata que a decepção retirou da mãe o sentido pra vida, de tal modo que ela acorda e vai dormir de modo autômato, obedecendo apenas aos protocolos sociais, nada mais do que isso.
O diagnóstico de Valentina é claro e objetivo: Estão todos doentes do espírito. O que lhes faltam é dar voz e vez à Alma, a centelha divina brincante que habita nós todos. Porque se fomos esperar o custo de vida abaixar, o bozo cair ou o racismo findar para sermos inteiros, nunca seremos. E então, sábia como toda filha de Nanã, Valentina reúne a família após o almoço e desabafa:
- Meu povo, sei que estamos todos quebrados e feridos após um ano inteiro de tantas faltas. Eu também sinto essa dor, em algumas noites eu fui dormir pedindo pra não acordar; eu também recorri a remedinhos coloridos; eu também chorei em posição fetal querendo desistir de tudo; eu também me vi à beira do suicídio por me sentir inútil; ao ver tanta crueldade no mundo eu também duvidei da existência de Deus e quis manda-lo à merda; e a minha busca frustrada pela essência em uma sociedade viciada na aparência me levou ao fundo do poço. Mas sabem de uma coisa, eu descobri a Imaginação, e depois de descobri ela, ahhhhh nada mais apagou minha luz. Mas eu não vou contar tudo, vocês vão experimentar.
- Vamos lá, vocês todos, papai, mamãe e Manu, fechem os olhos e respirem fundo. Isso, inspirando e expirando. Agora quero que vocês imaginem tudo o que não presta na forma como o trabalho acontece aqui na Terra. A quantidade de horas, a falta de identificação com o ofício, o salário injusto, e tal. Agora imaginem como seria o trabalho perfeito. Papai, qual a sua função? Qual o objetivo desse ofício? Para quem ele é direcionado? Quanto recebe para exerce-lo? Qual o impacto desse ofício na humanidade? Papai, agora diga pra gente, o que te veio?
- Eu imaginei que o trabalho perfeito é junto à terra, plantando, colhendo, partilhando a colheita e colaborando para a erradicação da fome no mundo. O objetivo desse trabalho é primeiramente me alinhar com a natureza, ouvir o coração da terra e voltar a ser Um com ela. E depois de atingir o meu Total Ser através dessa união, transbordar um pouquinho desse amor no mundo através da partilha do excedente, esse trabalho é direcionado à minha cura e ao mesmo tempo à cura de toda a humanidade, e se não tivesse ganho financeiro para esse ofício, mas tivesse outros ganhos, por exemplo o escambo dos alimentos produzidos por outros itens necessários, o apoio e companheirismo dos amigos pra lidar com as adversidades da natureza como as enchentes e a estiagem, e a satisfação por estar sendo útil, já taria de bom tamanho.
- Olha ele, eu não conhecia esse lado tão inspirado do papai, que isso ein, fiquei até arrepiada! Mas depois a gente comenta, vamos agora fazer a mesma coisa com relação à educação. O que não presta no modo como a Educação é conduzida? E como vocês gostariam que fosse? Vamos lá, todo mundo imaginando e sentindo como seria esse modelo educacional dos nossos sonhos. Pronto? Manu, agora é você quem vai contar pra gente o que imaginou.
- Eu imaginei que o planeta todo seria uma Escola e todos os lugares, praças, cachoeiras, florestas, parques, praias, museus, shoppings, ruas, viadutos, igrejas, todos esses lugares seriam lugares de aprendizagem. E todas as pessoas poderiam ser professores. Mas não teria ninguém pra dizer em qual lugar eu deveria ir ou qual matéria aprender, é a minha curiosidade que me guiaria. Se eu tivesse a fim de aprender sobre a natureza, poderia ir lá pro sítio onde o papai tem sua plantação pra aprender com ele como se faz pra ouvir o coração da terra...
- Mas vocês estão me saindo melhor do que a encomenda, nussinhora. Muito obrigada, Manu. E agora vamos imaginar o amor. Por que parece que o amor não tem dado muito certo em nossa humanidade? Continuamos vendo o nosso próximo como um concorrente, e nos relacionando com ele através da competição e da disputa. Daria pra ser diferente? Como seria o amor em um mundo regenerado? Mamãe, sua vez de partilhar com a gente a sua imaginação:
- O amor não aconteceria pela aparência, mas por identificarmos em todos os seres a essência divina e criativa, que é a mesma que habita também dentro de mim. O amor também não se restringiria aos laços sanguíneos, a nossa família seria toda a humanidade, por isso todos nós seríamos responsáveis por cuidar e proteger uns dos outros, o racismo por exemplo, não seria uma causa apenas de nós negros e negras, mas de todos que sabem que um carro não consegue sair do lugar se os pneus estão avariados. E sendo a humanidade o carro e a negritude os pneus, a humanidade jamais poderia ser plena enquanto o racismo não deixar a negritude ser efetivamente tudo o que ela pode ser.
- Caramba, mamãe. Depois dessa partilha, fica difícil falar qualquer coisa. Mas acho que realmente não tem muito o que falar quando a experiência já disse tudo. Eu apenas deixo vocês com uma provocação, é que diante de tantas possibilidades e potencialidades imaginadas, voltamos a acreditar que é possível, não é mesmo? Voltamos a sonhar... sabendo disso, precisamos nos auto-motivar todos os dias na construção de um mundo melhor, sendo melhor no mundo. E o primeiro passo pra isso é imaginar...
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