Dez anos de Mariana: o crime que calou comunidades e expôs a impunidade das mineradoras
Moradores ainda lutam por justiça e dignidade uma década após o rompimento da barragem de Fundão, que matou 19 pessoas e destruiu o Rio Doce.
Belo Horizonte – Em 5 de novembro de 2015, às 16h20, a barragem de Fundão, operada pela Samarco — controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton — se rompeu em Mariana, na Região Central de Minas Gerais. A enxurrada de lama tóxica matou 19 pessoas, varreu distritos como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, contaminou o Rio Doce até o litoral do Espírito Santo e desalojou mais de 600 famílias.
O que inicialmente foi tratado como acidente se consolidou na história como um dos maiores crimes socioambientais do país. A lama não destruiu apenas casas e rios: apagou modos de vida, tradições e identidades inteiras. Dez anos depois, a ferida segue aberta.
“A vida que a gente vive hoje não é a que escolhemos”
Mirella Lino tinha 17 anos quando viu a lama engolir o lugar onde cresceu. Hoje, aos 27, ela vive em Mariana, longe do território que chamava de casa. “Foram dez anos muito difíceis, morosos e dolorosos. É uma vida imposta que a gente vive”, desabafou à Agência Brasil.
A jovem tenta concluir o curso de Serviço Social enquanto aguarda, sem previsão, o desfecho de sua indenização. “A indenização nunca saiu. Está em processo judicial. E a cada novo acordo, o tempo da gente é o que se perde”, afirmou.
Assim como ela, milhares de atingidos enfrentam a burocracia que marca o processo de reparação conduzido pela Fundação Renova — criada em 2016 e extinta em 2024, após o novo acordo bilionário firmado com as mineradoras.
Um rio doente e comunidades sem futuro
Dez anos depois, o Rio Doce continua marcado. O G1 ouviu especialistas que classificaram o curso d’água como um “paciente crônico”, com biodiversidade reduzida e avanço de espécies exóticas. Mesmo com bilhões investidos em reparação ambiental, as ações não foram suficientes para restaurar o ecossistema.
Segundo relatório do Ibama, a perda de diversidade biológica é irreversível em alguns trechos. A lama continua sendo registrada em pontos do rio, especialmente em períodos de chuva intensa.
Para o agricultor Marino D’Angelo Junior, que perdeu tudo em Bento Rodrigues, o impacto humano é tão devastador quanto o ambiental. “A comunidade não existe mais, nunca mais vai existir. Quem era criança de dez anos hoje tem vinte e só aprendeu coisa de cidade urbana. A lama levou a simplicidade junto”, disse ao Brasil de Fato.
A justiça que não veio
Passados dez anos, nenhum responsável foi condenado criminalmente no Brasil. Em 2024, a Justiça Federal absolveu a Samarco, a Vale, a BHP e todos os réus do processo. A juíza federal substituta Patricia Alencar Teixeira de Carvalho alegou falta de provas para identificar condutas individuais que levaram ao rompimento.
O Ministério Público Federal (MPF) recorreu. O procurador da República Eduardo Henrique Aguiar afirmou que “a justiça tardia não é justiça” e defendeu que grandes crimes ambientais são resultado “de uma complexa estrutura organizacional, e não da ação isolada de indivíduos”.
Letícia Oliveira, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), também criticou a impunidade. “Está claro em vários documentos que havia informações sobre o risco da barragem. A empresa não fez nada para dar segurança, não avisou à comunidade e não fez a reparação. Essa impunidade deixou aberto o caminho para que um crime desse se repetisse em Brumadinho”, disse ao G1.
O novo acordo e a dívida moral
Em 2024, as mineradoras firmaram um novo acordo de R$ 170 bilhões com o poder público, homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O valor inclui os gastos anteriores e prevê mais vinte anos para a conclusão das ações de compensação.
Parte dos recursos ficou sob responsabilidade da Samarco, que afirma já ter desembolsado R$ 14 bilhões em indenizações individuais e auxílios financeiros. A Fundação Renova, por sua vez, havia gasto R$ 18,1 bilhões até setembro de 2024.
Mesmo assim, comunidades relatam lentidão e exclusão. Durante audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, representantes da Cáritas e de Assessorias Técnicas Independentes denunciaram que o novo acordo foi construído “sem participação efetiva dos atingidos”.
“A gente só consegue perceber a lentidão nesse processo de reparação”, afirmou Mônica dos Santos, moradora de Bento Rodrigues.
Justiça além das fronteiras
Enquanto o processo brasileiro se arrasta, mais de 620 mil atingidos buscam indenização na Justiça inglesa, em uma ação coletiva contra a BHP. Avaliada em cerca de R$ 260 bilhões, é considerada a maior demanda ambiental do mundo.
A advogada Caroline Narvaez Leite, do escritório Pogust Goodhead, que representa as vítimas, disse que “cada perda será analisada individualmente”. Segundo ela, a expectativa é que a sentença sobre a responsabilidade da empresa seja divulgada ainda neste ano.
“O futuro é uma pergunta sem resposta”
Em Mariana e nas margens do Rio Doce, o tempo parece parado. Casas foram erguidas, mas o pertencimento não voltou. Os rios seguem doentes, e a confiança nas mineradoras, extinta.
“O que aconteceu não foi um acidente técnico, mas um crime com causas estruturais”, diz o manifesto da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF). “Dez anos depois, seguimos com nossos modos de vida destruídos, deslocados de nossos territórios e privados de justiça.”
Para Mirella, a incerteza resume a vida após a lama: “Sempre que alguém me pergunta o que espero do futuro, eu digo: eu não sei”.
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