Coluna

QUARENTENA E ABSTINÊNCIA – A TRAFICANTE

Depois de ter bebido minha bebida amarga, deixar o armário e seguir a labuta, o meu esconderijo, não tão escondido assim se desfez. Seria como se eu estivesse em uma sublocação de uma quarentena. No escurinho, não tão do cinema, e bebendo uma bebida que eu já não tinha a menor ideia do que seria, não, necessariamente, um drops de anis, é claro, que após ter encarado uma bebida estranha, como alguma coisa agridoce ou coisa parecida, sair do armário foi brincadeira, tipo tirar pirulito ou coisa assim, de boca de criança (?!Caramba, quem faria isso?!).

Mas, nada termina quando se começa de uma maneira estranha. Talvez uma bebida de cor amarronzada um pouco doce a faria esquecer, minha abstinente, do seu sofrimento por um chocolate.

Porém, e sempre existe um porém, faltou o sorvete. Tirando a possibilidade de poder fazer gelar qualquer coisa, um sorvete é uma coisa insubstituível. Aquele afundamento da colher dentro de uma substância cremosa, ascendendo, perigosamente, em direção à boca, enchendo-a; nada é possível substituir.

Minha abstinente não estava conformada em não poder criar qualquer coisa assim. Até sugeri que poderíamos, quem sabe, fazer uma compota de jiló, misturada com aquela coisa agridoce, e congelar, seria um sorvete de … figo.

- Jiló! Ela exclamou, levantando do seu metro e meio de altura, que parecia alcançar o teto, me fazendo mergulhar nas profundezas da minha diferença de vinte centímetros a mais.

Me calei, engolindo a sugestão vegetariana, pensando em voltar para o armário, quando ela exibiu a chave do mesmo, tornando impossível a fuga, e rindo porque eu ainda pensei no armário da cozinha, ou mesmo na geladeira. Não! Sorvete, nem pensar, pensei eu, gelado por dentro e por antecipação.

Foto: Ronaldo Oliveira on Unsplash

Os ingredientes sugeridos pelos Influencers não tinham nenhum componente na casa e, portanto, a fabricação do sorvete seria impossível. Só restava a sua desistência, reduzindo-se ao seu metro meio de altura.

Até que no último pedido de feira havia um segredo nas compras. Uma mensagem subliminar dirigida à vendedora, que apesar de não ter sorvete em sua loja, teria contatos. E por aí fui descobrindo uma rede de tráfico de amantes de sorvetes, inclusive com cotação sobre sabores: incrível, ela conseguiu subornar a vendedora que, com certeza, amante da guloseima, não se fez de rogada fazendo as compras, mesmo que não fornecesse na loja.

No entanto, tendo em vista o contato, minha abstinente criou uma rede de fornecimento via whatsapp, cooptando amigas que também se sentiam deficitárias sobre isso.

Foi um baque. Afinal, depois de estabelecer essa forma de traficar entre as amigas o que ela não sugeriria a mais? E, por mais incrível, conseguia fazer um sobrepreço auferindo renda pelo tráfico de sorvetes.

Ameacei, é claro, denunciar esse escalabro, inclusive com o proprietário da loja, no que, novamente fui ameaçado com a ascensão do meio metro de altura, poderia prever que o meu final poderia estar no fundo do armário, e, quem sabe, trancado com a chave que ela, ameaçadoramente, balançava na minha frente.

Uma coisa é certa: nunca se atreva a encarar uma abstinente em busca de sorvete, o seu final poderá ser uma gelada.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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