Coluna

Livros vetados em escolas

- Marineth, no livro A ROSA DO POVO, publicado em 1945, o poeta Carlos Drummond de Andrade exterioriza o seu mais profundo sentimento de indignação frente às mazelas no mundo, principalmente em “A flor e a náusea”, em pleno período da Segunda Grande Guerra. Dezenas de anos após a publicação, considerando as evoluções alcançadas, ele, creio, provavelmente, diria que “o tempo é ainda de fezes/maus poemas/alucinações e espera/o tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse”.

- Querido Athaliba, não tenho dúvidas disso. E o poeta recomeçaria a poesia da mesma forma: “Preso à minha classe e a algumas roupas/Vou de branco pela rua cinzenta/Melancolias, mercadorias espreitam-me/Devo seguir até o enjoo/Posso, sem armas, revoltar-me?”.

- Sim, Marineth, com “olhos sujos no relógio da torre”.

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Macunaíma, de Mário de Andrade, está entre as obras proibidas pelo governo de Rondônia. (Imagem ilustrativa)

- Athaliba, com razão. O governo de Rondônia censurou 43 títulos de livros nas bibliotecas das escolas, pasme, sob a alegação de “conteúdo inadequado às crianças e adolescentes”. Entre os livros estão “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, criador da Academia Brasileira de Letras; e “Os sertões”, de Euclides da Cunha.

- É, Marineth, o trem está descarrilando, saindo do caminho socialmente aceitável, como lá na curva do ‘S’, em Itabira, Minas Gerais, na ferrovia que transporta 80 vagões supercarregados de minério de ferro, há muito tempo. Nomeadamente, na atual conjuntura do governo do mito pés de barro, a situação vem se agravando cada vez mais. E quais outros escritores teve suas obras literárias na famigerada lista de censura? Será que serão destruídos na fogueira da inquisição?

- Athaliba, tem o Mário de Andrade, com “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”; Carlos Heitor Cony, com “A volta por cima”, “Mil e uma noites”, “O ventre”, “O irmão que tu me deste”, “O mistério da moto de cristal”, “O ato e o fato”, “Rosa vegetal de sangue” e “O harém das bananeiras”; Ferreira Gullar, com “Poemas escolhidos”; Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, com “Mar de histórias” (todos os volumes); Nelson Rodrigues, com “A vida como ela é”, “Beijo no asfalto” e “O melhor de Nelson Rodrigues”; Rubem Fonseca, com “Os prisioneiros”, “Secreção, excreções e desatinos”, “Agosto”, “A coleira do cão”, “Calibre 22”, “O seminarista”, “O buraco na parede”, entre outros títulos, além de outros autores. Todos guilhotinados pela ignorância.

- Marineth, o Ministério Público Federal entrou em cena. Mas, confesso, as medidas legais cabíveis que possam ser adotadas não serão eficazes. A censura denunciada por parte da mídia já causou profundo estrago à cultura. Pois, no atual governo do mito pés de barro, integrantes da “equipe de idiotas” dele, como disse um ex-ministro e candidato às eleições presidenciais, está cogitando reescrever a história brasileira no período da ditadura civil-militar que vigorou de 1964 a 1985. Pretendem negar as prisões arbitrárias, torturas e assassinatos de contestadores.

- Athaliba, por tocar nesse assunto, daqui quero parabenizar a cineasta Petra Costa pela leveza e competência na condução do documentário “Democracia em vertigem”, que concorreu ao Oscar. É imperativo, indispensável, imprescindível assistir o documentário que, no agregado de críticas de TVs e cinema, tem 96% de aprovação. E, além de enxurradas de elogios nas redes sociais, mereceu louvor de um jornalista do The New York Times, considerando-o “uma crônica de traição cívica e abuso de poder, e também de desgosto”. Outro periodista estrangeiro delineou o documentário como “um retrato zangado, íntimo e assombroso do recente deslize do Brasil de volta às garras abertas da ditadura”.

- Marineth, o documentário “Democracia em vertigem”, acima de tudo, tem viés educativo e sugiro a sua exibição, seguida de debate, nas instituições organizadas da sociedade civil, como ABI – Associação Brasileira de Imprensa, nas Seções da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Associação dos Amigos do Memorial Carlos Drummond de Andrade. Já que, fatalmente, a exibição será censurada nas escolas públicas do Brasil, com o país flutuando em sobressaltos no insustentável estado de direito. Como podemos achar que estamos numa democracia?

- Athaliba, como dizia Drummond: “Em vão me tento explicar, os muros são surdos/Sob a pele das palavras há cifras e códigos/O sol consola os doentes e não os renova/As coisas/Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase”.

- É verdade, Marineth! O desencanto é tanto que repetiria: “Por fogo em tudo, inclusive em mim/Ao menino de 1918 chamavam anarquista/Porém meu ódio é o melhor de mim/Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima”.

- Sabe, Athaliba, o verso “Porém meu ódio é o melhor de mim” soa com sentido vital à luta na perspectiva de que “uma flor nasceu na rua/passem de longe bondes,ônibus, rio de aço do tráfego/uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto”.

- Marineth, essa flor talvez tenha inspirado Leonel Brizola em colocá-la numa mão como símbolo ao criar o PDT, na volta do exílio, quando lhe foi negada a legenda partidária PTB.
- A flor, Athaliba, símbolo do socialismo? Não creio, pois o manto vermelho carrega a foice e o martelo. E o poeta em “A flor e a náusea” garante: “Sua cor não se percebe/Suas pétalas não se abrem/Seu nome não está nos livros/É feia/Mas é realmente uma flor”.

- Marineth, tem razão. Ficamos com o apotegma do poeta ao afirmar que a flor “É feia/Mas é uma flor/Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. E, inseparável, indissolúvel, indivisível amiga, te ofereço meu soneto “Ameaça ao abismo”, como prova de resistência à submissão.

“Sobreviver por aqui, Marineth, é uma grande aventura.
É preciso coragem, sacrifício, para sustentar a ternura,
Diante de arrogância, homofobia, atrocidade e racismo,
Alastrados por todos os cantos nos ameaça ao abismo.

Tem que ter tirocínio aguçado para ludibriar a censura,
Que dilacera o direito de expressão e há muito perdura,
Perpetrada por execrados mascates, cheios de cinismo,
Às vezes, arrotando salvaguarda de adequado civismo.

A pátria amada sempre e constantemente vilipendiada,
Em ações furtivas de oligopólios da minoria dominante,
Deixa a maioria da apática multidão cega, amordaçada.

Atento aos ardis para esquivar-me de golpe fulminante,
Abomino as falácias de prazer que como isca é lançada
Içando tolo para ser sobserviente ao sistema sufocante”.

Lenin Novaes

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Crônicas do Athaliba

LENIN NOVAES jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS

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