Coluna

CONVERSA COM A SAUDADE

Juiz de Fora (MG) - Saudade, gostaria de conversar com você. Estou farto de quando me deito e a escuridão me envolve, ou mesmo quando me deixo em silêncio a voar por um espaço indefinido, e não quero que o tempo, seu companheiro inseparável, me retorne, envolto em fantasias, porque traiçoeiros e lastimosos, uma idade que não retorna mais. Você me deixa, perfidamente, perdido no tempo, a observar, com tristeza, no futuro, naquele outro que me tornei.

Você, saudade, me faz as vontades, e ajuda a construir um mundo de fantasias, de sonhos que eu imaginei e que o mundo não me deu.

Você se transforma em olhos visionários, são olhos retrovisores de passado com gosto em suspense de futuro distante. Você, saudade, é a responsável por meus males, de se submeter às minhas vontades e depois me acordar com um barulho qualquer, um som distante, que vem devagarinho e abre meus olhos para a realidade escura do quarto, brilhante da rua.

Foto: DDDanny D na Unsplash - 

Te culpo pelos meus desgostos. Te culpo por você não ter um rosto que eu possa ver ou conversar. Você me empresta todos os rostos possíveis, me dá todos os amores que eu não tive, e me entrega todos os postos que eu nunca vou ter, e as viagens que não fiz

Quantas vezes pedi que você não existisse. Você é a culpada das lágrimas que deixo rolar no meu rosto, quando me perco nos devaneios da imaginação que eu, perversamente, te empresto para viver.

Maldigo em você as memórias que eu guardo, e que você descerra a gaveta do escondido e dá luz, vida e reconstrução para as escolhas que eu vou fazer. Você é como o livro do investigador que vai em busca das respostas que me faltaram na covardia do que não disse. Faz dos meus projetos coisas perfeitas, sem retoques, a realidade a mim se sujeita, e o mundo se torna colorido e até me faz sorrir: você é a confusão entre minhas lágrimas e meu sorriso.

Você faz parte da minha loucura e eu te rejeito por isso.

Gostaria, se possível, de combinar com você que a partir de algum momento você não viesse para junto de mim, aproveitando os meus momentos de solidão, e na busca dos pensamentos por mim mesmo. Deixe-me encontrar, sozinho, a solução dos meus tormentos. Não me traga um mundo de refúgio e aconchego, não me traga mentiras para viver.

Deixe para mim o vazio do pensamento, e que se preencha com o pragmático, o que é possível, e não me deixe viver e dormir na ilusão do que não vai existir. Principalmente, não me devolva a juventude, o passado, que o tempo me levou sem dó, não me devolva amores, fantasias e nem mesmo as dores que foram a razão do meu crescimento, do meu aprendizado. Não me devolva nenhuma inocência, e nem me devolva um mundo sem responsabilidades. Não me torne seu dependente, sempre a procurar as respostas no passado para poder recomeçar, porque o tempo do recomeço se esvaiu.

Não me traga esperanças de novas alegrias, porque aquilo que eu desejava já não é mais possível conseguir. Não me permitirei mais viver no tempo errado, como se houvesse estradas paralelas ou mundos próximos de coexistir.

E, por fim, quando me deitar esta noite, deixe o vazio do escuro para de nada lembrar, e, principalmente, saudade, não me deixe sentir saudades de você.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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