Coluna

O RIO E A ESCRITA

RIVER
Foto:Jérémie Crémer en Unsplash - 

Escrevo enquanto o rio segue o seu curso. Límpida a água circula em novelo, sempre constante e segura. A escrita corre feito água pelo papel, com a caneta, como o rio, as palavras e as letras se alternam diferentes e inseguras.

Em dias de poucas nuvens, chuvas quase inexistentes, o rio deixa poças marcadas como se a água sólida, em solidão, se partisse em pedaços, deixando aqui e ali as suas marcas. O pensamento sem compromisso é exíguo em alguns momentos. Ele para, pensa em separado e igual a um pensamento partido, eu sei, não me diga, as palavras se deixam passar sem conectar o pensamento que parece também partido e, de repente, uma gota une todos os traços e um outro rio aparece, narrando os fatos, aparecendo o nexo, o discurso, como a água que corre célere. E o pensamento, como ele rio, aguarda a chegada deste insight eterno.

E o escrevente responsável pelo texto examina as palavras, tenta apaziguá-las, desejando o temporal de ideias entornar um caudal de formas e imagens, assim como o rio aguarda o fim do verão, recebendo as águas do céu para mantê-lo, finalmente, cheio, reto, sem intervalos.

Enquanto escrevo olho o rio e ele me ignora. Sempre estará ali escrevendo e reescrevendo as imagens, acrescentando temas de um lado para outro, sem se importar com a forma que ele deságua. O rio é um escritor solitário, escreve para ele mesmo, mesmo por linhas tortuosas.

O meu escrito é o pensamento que flui, nasce não sei onde e quer existir por si mesmo.

Eu não conduzo o rio, e nem ele se deixa conduzir. Quando o represam ele é energia contrária. Quando não escrevo é a vida que eu não consigo compreender. Sigo escrevendo sem ser o dono da escrita, esperando que ela saia da represa onde está escondida toda a beleza que em versos e prosa deságua.

Pescar em águas turvas é um tormento, podemos conseguir um peixe ou então um emaranhado de galhos. O rio tem a surpresa guardada, e nada deixa transparecer do seu fundo. Quando a escrita quer desabrochar ela espera o barqueiro chegar. Os dois entram no mesmo rio de águas turvas e vão com o tempo aprendendo a pescar.
 

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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