Alucard não será mais curral eleitoral de forasteiros!
A frase gritada no megafone ecoava além dos limites da praça redonda de Alucard, naquela manhã de céu acinzentado, carregado de intensa poluição de resíduos de minério de ferro, segunda-feira, após as eleições de 2º turno para presidente da República. De camiseta branca, estilo gaivota, bermuda com listras pretas e brancas, cores do clube do coração, e boné com o emblema do sindicato, o minerador Bigurrilho demonstrava em público comportamento atípico. Ele parecia em profundo transe, numa cena semelhante à pessoa em catarse, como que buscando libertação psíquica. Em instantes as pessoas aglomeraram-se ao redor dele, silenciosas. Pouco mais de meia hora já era uma multidão, preenchendo toda a praça.
- Athaliba, o cara repetia, repetia e repetia no megafone Alucard não será mais curral eleitoral de forasteiros! Aí apareceu Gessy. Usava vestido indiano, sem mangas, branco e estampado na barra, transparente, que deixava visível a calcinha tanga vermelha; tiara à cabeça e sandálias franciscanas. Ela o segurou pelo braço, com carinho, e pediu o megafone. Bigurrilho enfiava os dedos das mãos nos cabelos em desalinho, acalmando-se. E quase em soluços, de novo segurando o megafone, implorava às pessoas para reagir contra as investidas de candidatos não nativos de Alucard.
- Como assim, Marineth?
- Uai, Athaliba, candidatos de outras cidades tomam Alucard de assalto à caça de votos durante as eleições. E Bigurrilho, indignado, na sua falação, citou dois deles, ancorados por vereadores do PRB: o deputado federal Lincoln Portela, pastor evangélico e presidente da igreja Batista Solidária, e o seu filho, o deputado estadual Leonardo Morreale Diniz Portela. A mãe, Marilda de Castro Portela, forma o triângulo político da família, pois é vereadora por Belo Horizonte. É barba, cabelo e bigode, em Alucard!
- Então é isso, Marineth. A oligarquia Portela usa Alucard como curral eleitoral, né? Faz-me lembrar do bordão usado por prostitutas na zona do baixo meretrício para fisgar os clientes. Com voz envenenada elas pregam o seguinte: “Vem, meu morzinho, vem, aqui é sacanagem completa.” Que beleza, Alucard!!!
- Pois foi contra isso que Bigurrilho protestava como louco na praça. Pai e filho tiraram quase oito mil votos dos candidatos nativos de Alucard. No total, os candidatos de fora, em relação ao pleito estadual, somaram cerca de 22.500 votos. E um dos candidatos de Alucard, que obteve 34.797 mil votos, deixou de ser eleito por falta de 659 votos. Alucard continua sem representante na ALEMG e na Câmara Federal.
- Eta trem doido, Marineth. Alucard é mesmo quintal de forasteiros. Não tem soberania, figurada no ceticismo do personagem Tutu Caramujo. O poeta Antônio Crispim o descreve num poema, nos versos “Os homens olham para o chão/Os ingleses compram a mina/Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável”.
- Mas, Athaliba, o minerador não questionava apenas a exploração de votos dos candidatos de fora da cidade. Ele também criticava a atuação dos vereadores, chamando-os de “cachorrinhos lambe-lasca da raça lulu da Pomerânia.” Um deles, o Boca de Caçapa, que acumula a função de parlamentar com a de presidente de sindicato, foi alvo principal do repúdio. E pediu às pessoas para deixar de lado a prepotência e a arrogância, pois o momento exige autocrítica. Não poupou o PT, ressaltando “como votar no candidato do partido que quebrou a ética que pregava, se bandeou das massas e está com ex-presidente preso; isso fez muita gente perder a credibilidade na legenda, e, agora, é preciso superar a fase do infantilismo.”
Bigurrilho acabou aplaudido pela multidão que fez coro à palavra de ordem “Fora, Boca de Caçapa, vá mamar uma chavasca”. E deixou a praça abraçado por Gessy, cobiçada por olhares fixos que vazavam o vestido e se afixavam na calcinha vermelha, guia do remelexo do corpo escultural e, sem inveja, bunda admirável. As nádegas saltitavam num balanço sensual.
- Sem inveja, mesmo, Marineth! Bem, creio que o minerador lavou a alma na catarse. Mas, por falar em bunda, preferência nacional, até o saudoso poeta Antônio Crispim a admirou e a vinculou no poema A bunda, que engraçada:
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai pela frente do corpo.
A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
Ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
Em rotundo meneio,
Anda por si na cadência mimosa,
No milagre de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte por conta própria. E ama.
Na cama agita-se.
Montanhas avolumam-se, descem.
Ondas batendo numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda.
Vai feliz na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é bunda, redunda.
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o concurso nacional Poesias de jornalistas, homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS.
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