Coluna

A GAROTA QUE DORMIA

Ela era feia. Sim, feia. Mas, realmente, o que é beleza? À primeira vista, com suas roupas extravagantes, assustava de certo modo as pessoas que se encontravam no ônibus. Alguma vez vestindo um macacão vermelho ou cinza, alguma coisa nos cabelos estranhamente entrelaçados, alguma coisa sempre diferente. Ao se levantar para saltar sempre naquele mesmo ponto, com suas tatuagens, alguns metais saindo do rosto, sair do ônibus e se dirigir ao Bob´s para fazer, quem sabe, a sua primeira refeição. Ela transmitia uma figura estranha e longe dos padrões de beleza. Para mim, e talvez para os outros passageiros ela fosse feia. Ela morava na zona sul. O ônibus vinha de lá. Será?

Mas falávamos da beleza. No princípio, ela era feia. Os lábios um pouco grossos, sobressaídos, baixa, um corpo não muito perfeito. Uma cara sempre irritada de quem não dormira. E este é um detalhe, ela sempre estava com aquela cara de sono e fatalmente dormia, encostando a cabeça na janela.

Sentava-me ao seu lado, abria o meu livro, e ela também abria os olhos na vã tentativa de descobrir do que se tratava, revirava um pouco o rosto para ler o nome provável do autor, o nome do livro.

Até que afinal a sua boca não era assim tão feia. Os lábios, talvez sensuais... Pequena estatura, mãos e pés pequenos. Macameia. Sim, talvez uma Macameia. Uma estrela que ainda não veio dizer a sua hora.

Mas ela dormia. E sempre acordava um pouco antes da hora de saltar. Por que ela dormiria tanto?! Olhava eu o livro e o seu rosto pelo canto dos olhos. Talvez uma farra! Uma qualquer mulher. Uma noite de orgias, de embalos, incrementadíssimos em algum apartamento ou barzinho da zona sul. Então por que haveria de me interessar por alguém que se entregava a tais desmandos? Poderia até se notar algumas olheiras. Um certo ar de desleixo jogado no banco. Um sono profundo. As pernas feias um pouco entreabertas. Uma minissaia escandalosa para alguém que se deixava dormir em um banco de ônibus, sem se importar muito com o que os outros poderiam pensar. Depois de uma noite de farra! O que importava a sua maneira de se vestir? E quem se importava com alguém que se deixa ficar em uma farra durante toda a noite?

Foto: morguefile.com
Foto: morguefile.com

E ela lá estava jogada no banco, a cabeça de encontro ao vidro da janela, alheia totalmente aos solavancos do coletivo que entrava e saía dos buracos das ruas, indiferente também ao seu sono. Um solavanco maior, a sua cabeça bate de encontro à janela. Num resmungo, amuada leva a mão até a cabeça e como se apenas virasse na cama, recosta e acomoda os ombros, braços, seios e pernas no mesmo lugar, talvez até puxando um cobertor imaginário.

A idosa, de olhar fechado, repara em seu modo desleixado de dormir. O homem lança olhares cobiçosos ao seio pequeno entreaberto, balançante com o balanço do ônibus, deixava entrever toda a sua nudez na pequena abertura da roupa. Os sinais, sardas na pele, o seio levemente elevado, o róseo bico, pequenino, enrugado, o branco do sutiã, o metal da fivela...

Alguém no banco de trás se ajeita a pretexto de qualquer coisa e sorrateiramente... Os garotos com roupa de colégio se cutucando atrás a estão observando e observando o seio também. A bolsa sempre agarrada ao corpo. Instinto.

Eu leio o meu livro, termino o capítulo com surpresa sem saber que o houvesse lido. Há alguma coisa que me atrai. O ponto onde ela vai saltar se aproxima, e naquele dia ela está mais cansada que nos outros e parece que vai dormindo até o fim da linha, se alguém não a acordar.

Mas por que tanto cansaço? Será que na realidade é uma estudante, talvez? O cursinho muito pesado, terminando muito tarde. A loja em que ela trabalha fechando muito tarde. A correria para pegar o ônibus. A hora de entrar no cursinho. A aula já começada. Uma vida difícil. Dois empregos, talvez. A correria. Dormindo no outro ônibus. A volta para casa em outro ônibus, dormindo também... Casada? Filhos? Chegando em casa e preparando a comida sua... dos filhos... do marido? O ponto se aproximando. O ônibus um pouco vazio. Será que eu devo me levantar? Pedir licença, acordá-la, avisando:

-Olha, seu ponto já chegou!

Ela se levanta assustada. Olhando-me com raiva, talvez do sono interrompido.

-Muito obrigada! - diria ela.

As pessoas me olham, reprovando, aprovando. Levantar-me, e acordar uma garota que dormia! Ridículo! Ou covardia minha para prestar favor a alguém. Interromper os olhares sobre o seio que dormia também.

Um ponto antes, entrou uma turma de garotos de colégio. A algazarra talvez a acorde, pensei eu. Mas não, os gritos das crianças não tiveram o suficiente poder de despertá-la. Talvez o fortuito e oportuno solavanco do ônibus... talvez.

O ponto, onde ela deveria saltar, passou. O Bob´s também, na calçada em frente à janela. Do outro lado da rua a loja onde trabalha e onde dias antes a vira entrar estava aberta e alguns fregueses já eram atendidos. O que fazer para acordá-la? A farrista ou a estudante dormia. Esqueceu completamente, embalada em seu sono, longe das suas obrigações de trabalho.

O ônibus arrancou. Parou em alguns sinais, outros pontos. E ela dormia. O ônibus já ficava um pouco mais vazio. As crianças aproveitaram um sinal fechado para descer e entrar no colégio que na praça já se avistava. E ela dormia. A vida esqueceu-se dela. E ela da vida. Totalmente.

Ao passar, porém, por uma rua onde estavam colocando asfalto, o cheiro e o barulho da areia debaixo do ônibus teve enfim o poder de acordá-la. Ela se endireitou no banco, olhou pela janela e ajeitando os cabelos, levemente os retirou dos olhos com uma única mão, com o indicador levemente, como a bela que acorda de seu sono encantado, descobriu onde estava reconhecendo os lugares por onde não deveria estar naquela hora. Um pouco desconcertada olhou para os lados, levantou-se. Encarou o meu olhar de alívio ao vê-la, finalmente, acordada, ajeitou um pouco a roupa amarrotada, tocou o sinal. O ônibus finalmente deixou-a sair. Eu da minha janela olhava aquela estranha passageira que andava pela rua logo abaixo da janela. Sorria um pouco marota, olhando para o ônibus e encontrou o meu olhar sorrindo para ela também. Rindo de mim talvez que acompanhava o seu sono. Sorrindo como se houvesse sido pega em alguma travessura.

Desvia dos carros em tráfego lento, empinando o corpo para trás e volteando com graça os veículos como se fosse um cumprimento entre os dois. Olhou para trás e diante da poça d´água perto da calçada e do piso escorregadio, andava devagarinho, bem devagarzinho. Um sorriso sem graça esculpiu o rosto que virava para trás.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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