Coluna

A CHEGADA AOS ANOS 60

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Os anos sessenta me trazem boas lembranças, sendo que as lembranças são boas quando os anos nos trazem não anos de grande valor numérico, mas vividos com anos de baixa amplitude.

Naquele preciso dia em que eu fazia sessenta anos: os meus anos sessenta, não que ao acordar estivesse diante de alguma tragédia. Não é isso. O que poderia ser uma tragédia seria não ter a prerrogativa de se fazer sessenta anos. E, precisamente, naquele dia eu entrei em um banco, coisa que raramente fazia, para pagar uma conta.

Quando estava no meio da minha fila, meu olhar, como sempre fez durante todos os cinquenta nove anos da minha vida, percebeu a fila à direita. Um número pequeno de cabeças esbranquiçadas e corpos um tanto indolentes, entregues à inércia de uma fila exclusiva. Quando as filas começaram as separações, o divórcio etário, o reconhecimento de que a pressa, a corrida contra o tempo passou à preferência daqueles com crianças no colo, deficientes e maiores de sessenta anos, irritava-me ver quase chegar ao guichê de caixa ou informações e a preferência exercer sua prerrogativa.

Mas não havia superioridade para os sessenta. Na verdade, os sessenta eram o limite mínimo para uma guinada à direita.

Ao levantar o olhar para o aviso que definia quem poderia frequentar aquela fila, me vi diante do fato consumado - “Fila preferencial para pessoas de sessenta anos ou superior”. O consolo ainda restava que, havendo superiores, eu me colocava em um nível ainda inferior. Eu descobri que a fila, aquela fila, seria a minha fila.

Um grupo seleto de senhores e senhoras sendo atendido por uma funcionária exclusiva, quem sabe escolhida entre tantas, dado o seu jeito amoroso de lidar com aqueles exclusivos, com paciência incomparável para lidar com as reclamações e outros achaques.

Não me senti confortável de abandonar a esquerda, por quem, aliás, sempre nutri simpatias, mas sendo convidado, gentilmente, pelo aviso postado na parte superior do guichê que a minha idade permitia estar à direita. Afinal, ao envelhecermos, ficamos mais conservadores, menos propensos às novidades. Mas eu não me sentia assim, apesar de viver em constantes atritos com os celulares sofisticados que me chegavam às mãos.

É claro que me passou pela cabeça o momento em que, lido em jornal, Caetano Veloso, aguardando sua vez para comprar um ingresso de cinema, foi instado por seus familiares a comprar o ticket na fila exclusiva, sendo que, constrangido, seguiu em passos tímidos, sob os aplausos dos espectadores, após ser explicado que o músico não estava furando a fila por suas prerrogativas artísticas, mas por já estar na faixa dos sessenta anos.

Não me parecia em estado de ser aplaudido pelos circunstantes, a não ser que deixando o meu lugar na fila, favoreceria àqueles na faixa zero a cinquenta e nove anos.

A funcionária simpática e atenciosa atendia pelo nome sutil de Desirrè. Me sentiria tentado a explicar-lhe a razão do nome, deixando bem claro que o meu desejo não passava por estar ali em sua presença para pronto atendimento.

Mas algo poderia ocorrer de pior. Se, no meio da fila, alguém, também por atenção ou desdém, imagino eu, tocasse meu ombro e dissesse:

- Senhor, a sua fila é aquela, aquela da direita.

Eu poderia declinar do convite. Afinal a placa não dizia, em momento algum, a palavra obrigatória.

No espelho em frente, meus cabelos ainda não estavam totalmente brancos, e, afinal, na minha então fila, alguns exibiam fios brancos, até em maior escala que os meus. O que não me transformava em um penetra, alguém que rouba o lugar na festa de alguém. Também não seria de nada benéfico se alguns dos meus, então companheiros, dissessem em alto e bom som: “Se a sua fila é aquela o senhor está atrapalhando!” E também, por outro lado, as meninas que frequentavam a fila da direita não poderiam competir com as meninas que eu tinha ao meu lado, no lado esquerdo das filas.

Fiquei eu ali, dividido na ideologia da minha idade. Até porque eu não poderia frequentar a minha fila. E com uma aparência, digamos, mais jovem, poderia dar um certo brilho aos meus companheiros etários. Decidi não fazer isso. A bem da verdade, não gosto de causar constrangimentos.

Passei a imaginar que a lei tem um espírito. Montesquieu filosofou sobre ela e não estou a fim de interpretá-la agora. Mas, com certeza, aquele que elaborou a lei não pensou, necessariamente, na faixa etária, mas a formulou dentro de um espírito do justificado. Tendo uma lei um espírito formulador, imaginei que este seria na tentativa de estabelecer um parâmetro, um balizador para quem devesse frequentar a fila.

Pude assim dizer, sem sombra de dúvida, que o meu espírito ainda não pertencia àquele que a lei propôs. Sendo assim, acho que a essa fila deva ser dado o valor daqueles que realmente precisem dela. Ou de mim, dando uma aproveitadinha, caso esteja com pressa por alguma coisa.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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