Em algumas ocasiões, nesta trajetória que já se estende por oito décadas, eu me senti desalentado. Tenho idade que me assegura o direito de rememorar. Aos jovens não se confere esta franquia.
Não recapitulo os fatos com tristeza. Muito pelo contrário. As lembranças me alegram.
Na condição de Juiz de Direito, não rezei pela cartilha oficial. Intelectualmente descompromissado com dogmas, quase um réprobo, não subscrevia a jurisprudência dominante. Não idolatrava o direito de propriedade, numa época em que ser dono de terra constituía presunção de inocência. Homenageava o trabalhador, ao considerar a carteira profissional do carpinteiro documento mais precioso que os títulos registrados no Cartório de Imóveis. Censurava, em sentenças, o Código Penal, então vigente, por punir com mais rigor os crimes contra o patrimônio do que os crimes contra a pessoa humana.
Abreviei os processos de adoção de crianças, em aparente desobediência ao rito legal. Argumentei: Uma criança pode esperar o andamento da “traquitana da Justiça” (Monteiro Lobato), a sorte de uma criança pode suportar o emperramento dessa traquitana, quando pais adotivos suplicam pela oportunidade de adotar?
Sempre achei que o “encontro” do réu com o magistrado não podia ser uma encontro frio, sem alma. Para o juiz as audiências passam a ser corriqueiras. Para o réu o “encontro” com o juiz é extremamente sério. Muitos não entenderam que, em algumas audiências, franqueasse ao réu o direito de chorar, sem repreender ou admoestar mas, pelo contrário, acolhendo e convidando a desabafar.
Apesar de constante oposição, que força misteriosa impediu que o jovem juiz entregasse os pontos?
Que luz brilhou no meio da escuridão?
Qual foi a mão que segurou sua mão quando, à face dos desembargadores, negou ser benevolente com bandidos e, por este motivo, merecedor de reprimenda?
Ah sim, eu me lembro.
A mão do Anjo, a mão de Deus, a mão que revigorou minhas forças… foi a mão de um ex-preso que me entregou a Medalha de Honra ao Mérito que havia recebido na empresa onde trabalhava.
Ele me disse:
"Doutor, esta medalha é sua. Se naquele dia em que o senhor me libertou, eu tivesse continuado preso, eu hoje seria um bandido. Mas o senhor confiou em mim, apostou na minha recuperação. Por este motivo, esta medalha é sua.”
Que medalha preciosa! Superior, sem dúvida, a qualquer comenda. A medalha foi santificada pelas mãos do trabalhador que me fazia a oferta. Ele não usava vestes talares. O macacão do operário, manchado da tinta do seu trabalho, tem significado muito maior que a solene toga dos magistrados das altas instâncias.
Viva a rebeldia!
João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado (ES) e escritor.
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