Educação

Igreja expulsa universidade de câmpus em cidade histórica mineira

Depois de anos de disputa judicial, Ufop é condenada a devolver à arquidiocese prédios de sua unidade em Mariana. Entenda a batalha que ameaça também finanças da prefeitura

Prédios foram cedidos por comodato na década de 1980, como incentivo à criação de cursos. Vencido acordo, arquidiocese obteve na Justiça decisão favorável, que pode ser cumprida a qualquer momento (foto: ICHS/Ufop/Divulgação)
Prédios foram cedidos por comodato na década de 1980, como incentivo à criação de cursos. Vencido acordo, arquidiocese obteve na Justiça decisão favorável, que pode ser cumprida a qualquer momento (foto: ICHS/Ufop/Divulgação)

 

Uma história iniciada há 38 anos e com indícios de final traumático para alunos, professores, universidade e para uma cidade inteira. A Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) deve ser despejada de seu câmpus Mariana, o município vizinho da Região Central de Minas. A Arquidiocese da cidade ganhou na Justiça o direito de reaver os prédios onde hoje funciona o Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), e um oficial de Justiça é esperado a qualquer momento para cumprir a ordem. A instituição de ensino, que é dona do terreno, busca solução para não prejudicar 1,5 mil alunos e cogita até mesmo suspender o próximo processo seletivo. Para além da comunidade acadêmica, o assunto deixa a população e a própria administração municipal em estado de alerta. Depois do rompimento da barragem da mineradora Samarco, em 2015, é mais um duro golpe para o caixa da prefeitura. A Igreja não negocia e aguarda apenas a execução da sentença. 
 
A relação remonta aos anos 1960 e 1970, quando a Igreja apoiou a criação dos cursos. Em dezembro de 1980, o então arcebispo dom Oscar de Oliveira entregou em regime de comodato de 30 anos os prédios do século 18 do antigo Seminário Menor e do Palácio dos Bispos, que seriam restaurados pela Ufop para neles funcionar o ICHS. Dois anos depois, foram transferidos, pelo mesmo regime e pelo prazo de 51 anos, o edifício do Seminário Menor de Nossa Senhora da Assunção. O arcebispo doou ainda o terreno de 212,5 mil metros quadrados, ficando de fora do acordo apenas as áreas onde foram erguidos os seminários.
 
Há três anos, a Igreja venceu as ações, impetradas no início dos anos 2000, em que pedia a eliminação dos comodatos e a devolução dos prédios. Na primeira delas, a Justiça julgou procedente a declaração de que a doação se deu apenas em relação ao terreno. Na segunda, deferiu a rescisão de contrato de comodato. As sentenças foram confirmadas pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e já transitaram em julgado –  termo jurídico que define decisões das quais já não cabe recurso. 
 
SEM ACORDO
Depois disso, a universidade começou a negciar e envolveu a Câmara Municipal e a Prefeitura de Mariana nas conversações. “Há duas semanas, durante encontro da direção do instituto e da Reitoria com a Arquidiocese, fomos comunicados pela Cúria de que não haveria acordo. Deixariam o processo correr e não poderiam nos dar mais tempo, só mesmo o da Justiça. O medo de todos é de a qualquer momento chegar um oficial e nos mandar embora. Juridicamente, não resta nada a fazer”, explica o diretor do instituto, Luciano Campos da Silva. 
 
No ICHS, funcionam cinco cursos de graduação (bacharelado e licenciatura em letras, história e pedagogia) e pós-graduação (mestrado em história, educação e letras e doutorado em história). Além de 1,5 mil alunos, conta com 100 professores e 50 técnicos (veja quadro). Como complicador na disputa, ao longo de quase 40 anos a universidade construiu prédios próprios no terreno (a biblioteca e o auditório) e ampliou a estrutura por meio do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). “A sentença dá tudo de volta, mas nossos procuradores entendem que só um comodato venceu, o de 1980. De qualquer forma, não vemos como continuar no espaço, com três prédios no mesmo lugar, sem poder murar nem cercar, e duas atividades funcionando ao mesmo tempo. Nem sabemos qual a atividade será a deles”, diz o diretor. Qualquer intervenção exige o aval do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por se tratar de bem tombado. 
 
Uma das propostas feitas pela universidade, com intervenção da Câmara, foi de estender o comodato por mais de 10 anos para, assim, ter tempo de negociar uma possível construção dentro do terreno. “Disseram que não aceitavam essa proposta e seguiriam com processo, o que significa que o oficial vai vir e pedir para sair”, diz Luciano Silva. “Uma cidade que acabou de passar por uma tragédia, que enfrenta problema econômico e de emprego, vai perder uma universidade federal, aquilo que prefeitos de todo o Brasil fazem lobby para ter, sem contar o impacto imobiliário e cultural”, acrescenta. Dois pontos intrigam a universidade e só serão conhecidos no ato da execução da sentença: o primeiro é que a decisão judicial prevê o fim do comodato, mas não detalha qual, já que são dois acordos; o segundo é que pede o pagamento retroativo de aluguel desde a data em que a Arquidiocese entrou na Justiça.
 
Por dentro da Ufop
 
Alunos 
12.272 ao todo na graduação, sendo 
1.001 na educação a distância
 
Cursos
47 em todos os câmpus
 
Câmpus Mariana     
» Instituto de Ciências Humanas e Sociais – ICHS
» Instituto de Ciências Sociais Aplicadas  
 
Câmpus Ouro Preto
» Escola de Direito, Turismo e Museologia  
» Escola de Minas  
» Escola de Farmácia
» Escola de Medicina
» Escola de Nutrição  
» Instituto de Ciências Exatas e Biológicas  
» Instituto de Filosofia, Arte e Cultura  
» Centro de Educação Aberta e a Distância  
» Centro Desportivo
 
Câmpus João Monlevade     
» Instituto de Ciências Exatas e Aplicadas 
 
 
Universidade está em vias de ser despejada de imóveis históricos e enfrenta dificuldades para encontrar alternativas capazes de atender estudantes (foto: ICHS/Ufop/Divulgação)
Universidade está em vias de ser despejada de imóveis históricos e enfrenta dificuldades para encontrar alternativas capazes de atender estudantes (foto: ICHS/Ufop/Divulgação)

 

Decisão judicial pode deixar 1,5 mil universitários sem teto 
Com processos judiciais que já não admitem recursos e sem acordo à vista, uma possibilidade real para resolver o impasse envolvendo a Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e a Arquidiocese de Mariana é o Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) deixar a cidade histórica. Mas a saída tem consequências, por enquanto difíceis de ser medidas, e com impacto em um ponto delicado: as abaladas finanças da instituição de ensino superior. Seria mais um gasto para um caixa cuja saúde anda comprometida depois de sucessivos cortes de orçamento, promovidos pela União desde 2015. 
 
Hoje, 23% dos alunos do ICHS são de Mariana, 20% de Ouro Preto e o restante, de cidades da região. De acordo com o diretor do instituto, Luciano Campos da Silva, os estudantes do instituto são hoje os mais vulneráveis socioeconomicamente de toda a universidade, ou seja, os que mais demandam recursos da assistência estudantil – entre bolsas e moradia. Outra preocupação é com o investimento público feito recentemente, com a construção de mais blocos e a renovação das antigas unidades da moradia universitária. Ela atende 204 estudantes, sendo 84 dentro do terreno em que os prédios do antigo seminário foram erguidos – portanto, bem no meio da polêmica. 
 
A reitora da Ufop, Cláudia Marliére de Lima, classifica como “uma situação difícil e lamentável a saída dessa forma, embora a Arquidiocese não tenha deixado propriamente definido que ocorreria de imediato”. Precisando de tempo para estudar a logística de eventual transferência, pensar em alternativas se tornou urgente. A Ufop faz levantamento de quais unidades no câmpus de Ouro Preto teriam disponibilidade para receber os alunos de Mariana – e em quais horários –, o que implica, certamente, ajuda financeira aos estudantes para deslocamento e permanência e um estudo econômico de mais essa despesa. “Sem esse apoio, perderíamos muitos alunos”, avisa a reitora. 
 
Segundo ela, as repúblicas de Ouro Preto não conseguirão absorver a demanda. Se os universitários ficam em Mariana, volta-se ao primeiro ponto, relativo ao apoio de deslocamento. Tentar recurso para construir um prédio no terreno da Ufop em Mariana é outra saída, mesmo em tempos de crise, mas esbarra no tempo necessário para erguer o imóvel e nas restrições do patrimônio para construção na área de interesse histórico. “A previsão de corte para o ano que vem na rubrica de capital, que permite o investimento em obras, é bem maior, de 52%. Não teríamos como construir um espaço com a qualidade que se tem hoje em Mariana”, diz. 
 
“É muito preocupante, mas ainda acredito na possibilidade de negociação, não no sentido de reverter a situação, o que gostaria muito, mas de mais sensibilidade por parte da Arquidiocese, de nos deixar por mais tempo até viabilizar a construção”, afirma Cláudia Lima. Outro ponto obscuro diz respeito a com quem e para quem deixar a moradia estudantil em caso de uma possível saída, já que vender um bem público não é algo que se faça do dia para a noite. 
 
RECEITA AMEAÇADA
Para a reitora, a delicadeza da situação exige decisões conscientes, para se evitar um impacto jamais visto na região. “A presença da universidade é fonte significativa de renda e, do ponto de vista educacional, traria prejuízo de enorme monta. A cidade perderia tudo o que se faz na educação básica e fundamental, por meio de nossos projetos de extensão, acadêmicos e de pesquisa, que levam uma contribuição inestimável para professores e alunos da rede estadual e municipal e da universidade. É uma troca de aprendizagem muito importante.” 
 
Mariana, que amarga a perda de receitas após a suspensão das atividades da mineradora Samarco, em 2015, pode ver mais uma parte de seu capital bater asas. O prefeito, Duarte Júnior, prefere não acreditar no fim do câmpus. “Nem passa pela minha cabeça. Seria um prejuízo incalculável. Além das pessoas que movimentam a economia, 23% dos alunos são marianenses. Se não houver uma solução conjunta, é um prejuízo para os filhos da terra, que terão de buscar solução em outro lugar”, diz. Segundo ele, a prefeitura está batalhando para fazer prevalecer o diálogo entre a Ufop e a Arquidiocese, já que a cidade não tem outro lugar para oferecer à universidade. “A decisão judicial existe e ela deve ser cumprida, mas deve haver um meio de não prejudicar nenhuma das partes nem o município.” 
 
A Arquidiocese informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não vai se manifestar sobre o assunto e que tudo o que tem a dizer está nos autos do processo.
 
Terreno abriga também construções erguidas por iniciativa da Ufop (foto: ICHS/Ufop/Divulgação)
Terreno abriga também construções erguidas por iniciativa da Ufop (foto: ICHS/Ufop/Divulgação)

 

Raio-x do ICHS
 
Alunos 
1,5 mil
 
Professores 
100
 
Técnicos 
50
 
Graduação
» Licenciatura: pedagogia, história e letras (inglês e português)
» Bacharelado: história, letras (tradução, estudos literários e estudos linguísticos)
 
Pós-graduação
» Mestrado: história, educação e letras
» Doutorado: história
 
Origem do ICHS
 
Foram firmados os seguintes acordos com a Igreja:
 
15/12/1980 – Doação à Ufop, pela Arquidiocese de Mariana, de terreno com área de 212.500 metros quadrados. A doação foi feita expressamente para a instalação do Instituto de Ciências Humanas e Sociais na cidade de Mariana
 
15/12/1980 – Celebrado contrato de comodato por 30 anos
» Prédio: parte nova do seminário, onde são lecionadas as aulas para os alunos, e o antigo Palácio dos Bispos
 
2/12/1982 – Celebrado contrato de comodato por 51 anos
» Prédio: Seminário Menor de Nossa Senhora da Assunção
 
Ações da Igreja
 
1- Pedido de declaração de que a doação do imóvel pela Arquidiocese de Mariana à Ufop se deu apenas em relação ao terreno
Pedido julgado procedente trânsito em julgado
 
2- Rescisão de contrato com relação ao comodato de 1980
Pedido julgado procedente trânsito em julgado
 
Proposta apresentada pela Ufop durante negociação com a Igreja na Câmara Municipal
Prorrogação do comodato por 10 anos para a construção de novas instalações no próprio terreno (construção a ser negociada com os órgãos que cuidam do patrimônio)
 
Resposta dada pela Igreja em reunião na Cúria
Só admite o previsto nas sentenças e aguarda execução da decisão judicial 

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