Opinião

AMOR SEGUNDO BELL HOOKS

Bell Hooks (Foto: Divulgação)

CENA 1: Salvador, Dezembro de 1619: após serem sequestrados de sua pátria-mãe, onde eram casados, Aza e Ughoa, ao aportar em terras brasileiras são separados pela escravidão. Tiveram seus corpos reduzidos à mão de obra, viram seus filhos sendo vendidos e seus parentes e amigos sendo açoitados sem razão. E qualquer manifestação de raiva, revolta, tristeza ou saudade os condenaria à morte. Um escravo que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, não sobreviveria. 

CENA 2: Salvador, Dezembro de 2021: Malika tem 25 anos, é uma mulher bem sucedida, mas nunca teve “sorte” no amor. Mora com sua bisavó, avó, mãe e filha. Sempre ouviu das amigas que era uma mulher forte. Malika resolveu fazer terapia quando a sua filha de 5 anos disse “eu te amo” e ela não soube como reagir. 

Ao ler sobre a notícia da morte da escritora e ativista bell hooks em uma rede social, Malika descobriu no Google um famoso texto da autora chamado “Vivendo de Amor” e desde então, segue absorta nas reflexões suscitadas pela leitura. Nesse texto, Malika descobriu que não é à toa que as últimas quatro gerações de mulheres da sua família dedicaram a sua existência ou para suprir as faltas materiais ou para lutar diuturnamente contra as opressões raciais, não sobrando qualquer tempo, disposição ou energia para olhar com cuidado para as suas próprias emoções e sentimentos. Percebeu que toda a sua família, incluindo ela própria, tem acreditado que a capacidade de reprimir emoções garante a sobrevivência e a segurança material. 

Um dos efeitos disso: Certo dia, quando Núbia, a filha de Malika, sofreu racismo na aula de natação, ao invés de abraçar a menina e enxugar as suas lágrimas, para num segundo momento, ir até a Escola e resolver a situação, a mãe cheia de fúria no olhar, pega a menina pelo braço, manda ela engolir o choro e diz que naquele dia ela iria aprender a se defender.

Ao reviver esse episódio através da leitura de bell hooks, Malika põe pra fora um choro convulsivo porque constata que a escravidão deixou marcas profundas na subjetividade de toda a sua família. Percebe que os seus primeiros ancestrais libertos, após a abolição, estavam absolutamente despreparados para a arte de amar, as famílias espelhavam a brutalidade conhecida na época da escravidão, com os mesmos modelos hierárquicos e  espaços domésticos onde conflitos de poder levavam os homens a espancarem as mulheres e os adultos a baterem nas crianças como que para provar seu controle e dominação. Estavam assim se utilizando dos mesmos métodos brutais que os senhores de engenho usaram contra eles.

E nos dias atuais, a habilidade de esconder ou mascarar os sentimentos passou a ser considerado um sinal de personalidade forte, mostrar os sentimentos é considerado uma bobagem em uma sociedade onde é mais urgente se posicionar bravamente contra todas as formas de opressão e exploração que a população negra é sujeitada. 

Malika entende que nós negros temos sido feridos até o coração, e toda essa opressão e exploração dificultam nossa capacidade de amar, mas não quer mais saber de passar uma vida inteira reagindo ao sistema. Malika está disposta a não negar mais a sua necessidade de conhecer o amor, de amar e de se amar, ela reconhece que somente quando nos amamos reconhecemos que é preciso ir além da sobrevivência. Por isso, decreta que o nosso maior ato político é amar, e se amar. 

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