“Vista assim do alto, mais parece um céu no chão
Sei lá, em Mangueira a poesia feito um mar, se alastrou
E a beleza do lugar, pra se entender, tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar e os pés recusam pisar
Sei lá não sei... Sei lá não sei”
O samba “Sei lá, Mangueira”, de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, retrata a fase romântica no Rio de Janeiro. Ir aos morros e favelas era simples aventura para, em regra, assistir ensaios de escolas de samba e curtir apresentações musicais, a céu aberto, de conjuntos regionais, antes do advento de guitarras elétricas. Cabe lembrar que, em relação àquele samba, o todo poderoso contraventor do jogo-do-bicho Natal (Natalino José do Nascimento – 1905/1975) deu bronca em Paulinho por cantar em louvor à Mangueira. O bicheiro voltou a recuperar a confiança num dos mais admirados compositores de sua escola de samba quando ele compôs “Foi um rio que passou em minha vida”, inquestionável declaração de amor à Portela.
Se a perda para Brasília da condição de Distrito Federal, capital da República, em 21 de abril de 1960, provocou a pergunta o que será do Rio?, a fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio, dia 15 de março de 1975, selava a transferência da cidade para o purgatório. Essa situação se configurou na imagem do gaúcho de Bagé, o general-presidente Emílio Garrastazu Médici (responsável pelos anos de chumbo da ditadura militar de 1964 a 1985) na inauguração da Ponte Rio-Niterói, num Rolls Royce, carro de empresa automobilística inglesa, em 4 de março de 1974. Meses após a ligação da Guanabara com Niterói sobre a Baia de Guanabara, o sucessor dele, outro gaúcho de Bento Gonçalves, o também general-presidente Ernesto Beckmann Geisel, sancionara a lei complementar regulamentando a formação de novos estados e territórios e fixava as disposições para a fusão. Era um dos víeis do projeto Brasil Grande, idealizado pelos militares a partir do golpe civil-militar em 1964.
Bem, estimados leitores d’O Folha de Minas, o Estado do Rio de Janeiro caiu em erupção política, com a manobra da união forjada pelos militares na tentativa de neutralizar o então MDB, na Guanabara, partido de oposição, enquanto no Estado do Rio predominava a Arena, o partido oficial da ditadura. É imperativo registrar que antes da fusão Geisel nomeara como governador do Estado do Rio de Janeiro o vice-almirante Floriano Peixoto Faria Lima. Para prefeito do Rio, o ex-estado da Guanabara, o engenheiro Marcos Tito Tamoyo. E para Niterói, antiga capital do Estado do Rio, foi nomeado Ronaldo Arthur da Cruz Fabrício. O então ministro da Justiça, Armando Falcão, entregou o cargo de governador a Faria Lima, no Palácio Guanabara, na presença de ex-governadores eleitos indiretamente: Chagas Freitas (Guanabara) e Raimundo Padilha (Estado do Rio).
Após séculos de predomínio político, econômico e cultural, etc. e tal, o Rio se esfacelou e, no entendimento do incompetente atual prefeito, Marcelo Bezerra Crivella (PRB), bispo da seita religiosa evangélica Igreja Universal do Reino de Deus, “virou uma esculhambação”, que significa anarquia, avacalhação, bagunça, estado de desordem, confusão. Desde sempre o Rio ressente da falta de política pública na área da habitação, tendo ocupação desordenada em sua expansão. A abertura do texto menciona o Morro de Mangueira não por acaso. A construção da residência que virou Palácio Imperial, em São Cristóvão, doado à família imperial pelo português Elias Antônio Lopes, que ficou rico como traficante de escravos, obrigou antigos moradores na área a ocupar o Morro de Mangueira.
As recentes tragédias com mortes causadas pelas fortes chuvas e desabamentos de dois prédios, acumuladas a tantas outras inesquecíveis, escancaram, esbugalham a face visível de um sistema político falido. Essa realidade deplorável à condição essencial de vida não é privilégio do Rio de Janeiro, onde morros e favelas, além de vários bairros, estão sob o domínio do poder das milícias e de traficantes de drogas. O sociólogo José Cláudio Souza Alves, ex-Pró-reitor de Extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), autor do livro Dos barões ao extermínio – Uma história da violência na Baixada Fluminense, é categórico ao afirmar que “a milícia é o Estado”. Confiram matéria aqui no site no link http://ofolhademinas.com.br/materia/31110/coluna/a-milicia-e-o-estado
Itabira, em Minas Gerais, cercada por mais de uma dezena de barragens com rejeitos de minério, perdeu a identidade com a exploração que fez sumir do mapa o Pico do Cauê. Será que a cidade tem data marcada para sucumbir? São tantos os problemas que afligem a população brasileira que, creio, a solução política está no poder popular. É a salvação da pátria, que nos resta, com ordem e progresso. E como abri o texto com samba, faço o mesmo no encerramento também com a nossa maior manifestação cultural popular. Ouçam, por favor, estimados leitores d’O Folha de Minas, “O dia em que o morro descer e não for carnaval”, do saudoso Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro.
“O dia em que o morro descer e não for carnaval
Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
Na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu
Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (é a guerra civil)
No dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
E cada uma ala da escola será uma quadrilha
A evolução já vai ser de guerrilha
E a alegoria um tremendo arsenal
O tema do enredo vai ser a cidade partida
No dia em que o couro comer na avenida
Se o morro descer e não for carnaval
O povo virá de cortiço, alagado e favela
Mostrando a miséria sobre a passarela
Sem a fantasia que sai no jornal
Vai ser uma única escola, uma só bateria
Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
Que desfile assim não vai ter nada igual
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
Nem autoridade que compre essa briga
Ninguém sabe a força desse pessoal
Melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria
Senão todo mundo vai sambar no dia
Em que o morro descer e não for carnaval”
LENIN NOVAES* é jornalista e produtor cultural. Co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som - MIS
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