- Athaliba, na atual conjuntura me sinto praticando stand-up em águas turvas, neste país de faz de contas, mergulhado numa tragédia sanitária à qual aumenta dia-a-dia sepultamentos lacrados e sem velórios. É muita sujeira espalhada por aí, Vai do exercício ilegal da medicina pelo mito pés de barro, ao impor a cloroquina (o Mandetta diz que ele queria alterar a bula do remédio) no tratamento do COVID-19 à corrupção desregrada na área da saúde, passando pela violência desmesurada da Polícia Militar. Aliás, desde sempre. Isso não é novidade. Não é mesmo?
- Marineth, por favor, não se arrisque à prática de stand-up. O mar não está prá peixe. Siga à risca os protocolos contra o coronavírus. Sua vida é essencial à minha sobrevivência.
- Athaliba, ocê acha que sô besta? Tô falando de stand-up em águas turvas no grosseiro sentido figurado. Cada vez mais me convenço que sobreviver neste país é uma grande aventura. Se correr o bicho te pega e, se ficar, o bicho te come, literalmente. Deixa-te os ossos. E lambe os beiços, palitando os dentes encardidos, com a boca escancarada e ensanguentada.
- Poxa, Marineth, tá assistindo filmes de terror nesse confinamento sem fim? Tu és tão sutil e esbanja ternura por todos os poros. Não se permita brutalizar. Aguente os trancos.
- Phorra, Athaliba, é o que tenho feito por toda vida. Sou guerreira. Trago dentro do ventre a fábrica do Brasil. Acontece que à vezes é preciso descarregar. Não dá para “seguir até o enjoo”, como indaga o poeta Drummond. É tanta imundice a céu aberto que contamina o ar puro logo ao alvorecer. E nesse contexto “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.
- Marineth, como diz a canção, “tudo e divino, maravilhoso”, retrucada por Belchior. É essencial, sei, nesse tempo de crise sanitária, buscar manter o equilíbrio emocional. Mas, não é tarefa fácil, simples. Neste novo normal causado pela pandemia do COVID-19, aqui, no Brasil, o desafio é dobrado. Todo dia somos surpreendidos por fatos incoerentes que desestrutura nossa percepção em aprender a sobreviver de maneira diferente. Pois “nada será como antes”.
- Pois é, Athaliba. Tá entendendo, agora? Quero me desanuviar das estapafúrdias atitudes do mito pés de barro, sentindo-se todo poderoso no trono da Presidência da República. Quero me livrar das notícias de covardias da PM contra moradores de morros e favelas, em supostas ações de combate a milicianos e narcotraficantes. Do desabafo da atriz Maitê Proença em revelar que “detesto fazer sexo sozinha, mas a gente não pode receber visitas, né?” A carga é muito pesada.
- Marineth, antes de tudo isso passar, ainda sem avistarmos luz no fim do túnel, ou seja, o antídoto eficaz para o COVID-19, nós iremos amargar situações muito difíceis. Infelizmente. Às vezes nos sentimos a deriva, é certo. Somos acometidos por momentos de profunda angústia; sensações de tédio; noites de insônia. Ficamos dispersos.
- Sim, Athaliba. Uma amiga me telefonou numa dessas madrugadas de baixa temperatura de fim de outono, dizendo que rolava na cama prá lá e prá cá, sem conciliar o sono. E, por esse motivo, me acionava para confidenciar um segredo que até então guardava a sete chaves. Foram cerca de três horas de conversa, quebrada por soluços de choro contido.
- Marineth, que mistério a sua amiga guardava?
- Athaliba, segredo é segredo. E não quero que as pessoas pensem que mexericamos. Ela fez retrospectiva completa da trajetória de vida. Foi uma verdadeira catarse. Contou que avaliou ir à rua completamente nua, como forma de penitenciar-se. E que desistiu da ideia por temer que pudesse sofrer violência sexual. E decidiu me ligar.
- Sabe, Marineth, essa pandemia do COVID-19 que nos coloca confinados pode desajustar os miolos. Tem que se ter cuidado para evitar a loucura, a alienação.
- Athaliba, no auge do desespero, ela confessou que já não acreditava em mais nada. Que não adiantava preces e orações. Suplicara perdão até a quem de maneira involuntária magoara. Mas que perdoar a si mesma era quase impossível. Enfim, servi de para-raios e absorvi o impacto das angustias. Mas, “amigo é coisa prá se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração” e fui boa “orelha”. Dei colo e, afinal, ela adormeceu. No dia seguinte me disse que tinha recuperado a autoestima. Era a mesma de sempre: altiva, meiga e solidária.
- Muito bem, Marineth. Ocê é um poço de benevolência e, por isso, manifesto preocupação com seu estado de espírito. Muito embora compreenda que essas aberrações políticas e sociais provocam distúrbios aos mais sensatos e racionais dos mortais. O mito pés de barro tá com os dias contados e tudo vai ser diferente. Vou te levar ao drive-in cinema para sessão dupla dos filmes “Luzes da cidade” e “Luzes da Ribalta”, de Charlie Chaplin. Ocê vai gostar amiga!
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