Escritos de presos políticos podem surgir em escavações no DOI-Codi
Trabalhos começam nesta quarta; material genético pode ser encontrado
São Paulo - Material genético de vítimas da ditadura militar e escritas dos presos políticos nas paredes são achados que podem surgir do trabalho de escavação no antigo Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). O órgão, que era subordinado ao Exército e foi local de tortura e assassinatos de opositores do regime, terá sua estrutura analisada por pesquisadores a partir desta quarta-feira (2).
“Vamos fazer abertura de pequenas janelas, que a gente chama de janela de prospecção arqueológica, para identificar se existe algum material que possa remeter ao uso do prédio como um centro de tortura”, disse a historiadora Deborah Neves, coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) Memorial DOI-Codi.
São três frentes de trabalho: arqueologia forense, arqueologia da materialidade do espaço e arqueologia pública. Essa última envolve o trabalho de divulgação, oficina de formações com professores e alunos, a visitação pública e o ciclo de debates.
A pesquisa no DOI-Codi em São Paulo é pioneira no país, porque inclui a investigação de arqueologia forense em um prédio histórico marcado por violações do estado durante a ditadura militar. “Nossa pesquisa é pioneira porque ela une esses dois campos, a arqueologia da materialidade e a arqueologia forense, além da arqueologia pública. De uma forma mais completa, o nosso trabalho realmente é pioneiro”, disse Deborah.
Escavações já foram realizadas no prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em Belo Horizonte (MG), no entanto, elas foram dedicadas à arqueologia de materialidade, que investiga as alterações feitas no prédio, qual sala abrigava cada setor e o que acontecia em cada local, por exemplo.
A arqueóloga forense Claudia Plens, professora do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que integra o GT, aponta que muitas vítimas solicitam que a equipe localize, por exemplo, antigas escritas que as vítimas deixavam na parede relatando o que estava acontecendo.
“Entendo como fundamental usarmos métodos da arqueologia [de materialidade] e da forense para interpretação e documentação dos fatos do passado que não foram devidamente investigados. Os familiares e a sociedade, em geral, necessitam de uma resposta a ações de extrema violência que desestruturam as sociedades. E a materialidade dos fatos podem ser tratados como provas dos fatos”, avaliou.
Ela explicou que as escavações no subsolo, que correspondem à arqueologia de materialidade, visam à compreensão da estrutura, fundações do edifício, para entender o contexto em que a edificação foi construída e possíveis modificações que possam revelar um pouco da história dessa estrutura. “Já a decapagem de pisos e paredes na área interna visa localizar marcas que possam apontar algum acontecimento dentro desses cômodos”, acrescentou, sobre o trabalho forense.
Deborah Neves, também pesquisadora da Unifesp, ressalta que tanto o prédio onde hoje está a delegacia quanto o prédio dos fundos, que será alvo das escavações, foram utilizados como locais de tortura. A delegacia foi muito utilizada até 1970 e o prédio dos fundos, a partir de setembro de 70, era utilizado para sessão de interrogatórios.
Todo o complexo que compõe o DOI-Codi é tombado, mas cada prédio tem um grau de preservação, conforme explicou a pesquisadora. “Esse prédio, que é o 2A, que nós estamos investigando, é o que tem menos intervenções ao longo dos anos, então ele é o mais preservado do complexo e foi o principal onde as torturas ocorreram. Ele tem uma preservação tanto da parte externa quanto da sua parte interna”, apontou.
Memorial DOI-Codi
O material coletado nas escavações ficará abrigado, a princípio, no Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp, até que haja a criação de um memorial físico – objetivo final do GT Memorial DOI-Codi. O projeto do grupo de trabalho inclui também a criação de um memorial virtual com todo o material resultante da pesquisa, que é mais ampla. A pesquisa arqueológica faz parte do caminho para a criação do memorial.
A historiadora ressalta que não existe memorial possível nem adequado se as estruturas do prédio não forem conhecidas. Ela cita o prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em São Paulo, que hoje abriga o Memorial da Resistência e que foi totalmente descaracterizado por uma reforma em 1999. “Essa pesquisa arqueológica visa também justamente isso: resguardar a materialidade do prédio para evitar que seja feito uma higienização no local como aconteceu no prédio do Dops”, lembrou.
Além da parte arqueológica, o grupo faz coleta de testemunhos, cujos vídeos estão no Memorial da Resistência, e investigação de documentos no Arquivo do Estado de São Paulo e no Arquivo Nacional. “[A previsão é que] a gente consiga, até 2025, fazer a inauguração de um memorial virtual, que reúna as informações sobre o órgão em uma única plataforma em que seja possível as pessoas fazerem um tour virtual pelo prédio e também acessar os resultados de todas as pesquisas que estão sendo feitas dentro do projeto”, disse Deborah.
Reparação
Para a historiadora, o principal resultado da pesquisa é trazer conhecimento sobre o que foi o DOI-Codi, compreender qual foi o impacto da sua criação e servir como instrumento de reparação para vítimas da ditadura e seus familiares. “O órgão não só atuou durante o período da ditadura, mas não temos dúvida já - a partir das pesquisas de vários historiadores - que esse formato influenciou as polícias militares principalmente e o próprio raciocínio do Exército, como ele enxerga a população”, avaliou.
“Tendo em vista que o Exército voltou a ser protagonista político nos últimos anos, é importante entender qual foi o tipo de mentalidade construída dentro desse órgão. E não há dúvida de que ocupar esse espaço como memorial é uma forma não só de o estado prestar conta sobre a sua atuação durante o período de exceção, mas também de apontar o norte para mudar a forma como conduz a sua relação com a sociedade no tempo presente”, disse Deborah. Entre os eventos que ocorrerão ao longo das escavações, até 14 de agosto, haverá uma mesa de debate sobre a violência policial continuada ainda hoje.
Ela avalia que o espaço do DOI-Codi abrigar o memorial é relevante por causa da materialidade do lugar, o que é algo cada vez mais raro em função da destruição de espaços como esse. “É muito importante que a gente consiga constituir esse memorial para continuar refundando os valores da democracia, de um estado democrático de direito e um compromisso de não repetição não só para as pessoas foram torturadas, mas para a sociedade brasileira”, acrescentou.
Para Gabrielle Abreu, coordenadora executiva de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, ainda seja 2023 e que a ditadura já tenha formalmente acabado há algumas décadas, ainda há muita coisa para ser descoberta. “O Brasil ainda carece de elucidações. Iniciativas como essas que estão acontecendo no DOI-Codi nos ajudam nesse sentido, porque, para a gente poder de fato superar o regime militar, para que a gente possa avançar e consolidar nossa democracia verdadeiramente, a gente precisa descortinar algumas das experiências do passado ditatorial”, disse.
“Eu acompanho com muito entusiasmo toda essa mobilização em torno do DOI-Codi, é um espaço muito sensível para o instituto porque o Vlado foi assassinado naquele espaço, mas a gente reconhece que esses são esforços importantes, no sentido de um entendimento completo do que foi a ditadura, com as devidas críticas, e também a consolidação de um novo espaço de memória referente ao período”, disse.
Em 24 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, foi chamado para prestar esclarecimentos na sede do DOI-Codi, onde sofreu torturas e foi morto no dia seguinte. A versão dos militares na época foi a de que Vlado teria se enforcado com um cinto, cuja foto foi montada e divulgada. Testemunhas apontaram que ele foi assassinado sob tortura e, em 1978, o legista Harry Shibata confirmou ter assinado o laudo necroscópico sem examinar nem ver o corpo. No mesmo ano, a Justiça brasileira condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte do jornalista.
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