Coluna

E DAÍ?

Vivemos há muito tempo postergando nosso futuro. O futuro é uma construção, um sonho de realizações que esperamos que se transforme em realidade. O futuro é gerado nos projetos pessoais, sociais, familiares etc. Negligenciar o presente, e fazemos isso deixando o “E daí?” dominá-lo, é sinal de que o futuro estará, irremediavelmente, comprometido.

Se há um problema dizemos “E daí?”, para a falta de solução, a falta de habilidade para tentar uma vez mais, ou do desinteresse mesmo, deixando que a “natureza” se encarregue da solução.

O “E daí?” também está presente no inocente verso “Deixa a vida me levar”. Sem perceber somos uma sociedade do “E daí?” presente, também, no “Antes ele do que eu”.

Foto:Jackson Simmer / Unsplash

Esse “E daí?” está entranhado dentro de nós ao longo da história. Se damos “um jeitinho” também é uma forma de dizer “E daí?” porque burla todo um processo que deveria seguir o trâmite da normalidade. “E daí?” se a anormalidade é naturalizada.

Até que o desprezo pelo sofrimento do outro leva à negligência. Muitos diriam que tocar o tristemente conhecido “meme do caixão”, fazendo piada grosseira sobre a atual situação, não torna os atores em criminosos, afinal eles não praticaram o crime, apenas usaram o meme para fazer um tipo de celebração (E daí, não é mesmo?) porque é apenas uma gozação. Esse humor negro é um “nem tô aí” normal.

O que esses não veem, não entendem (poderiam cantar até a letra da música “E daí e daí?”) é que não têm empatia com o sofrimento do outro. As pessoas morrem, mas, afinal, elas morrem todos os dias, morrem de tudo, e daí?

O choque com a colocação do “E daí?” sempre foi usado por nós. No nosso dia a dia vendo os moradores de rua, os desempregados, a meritocracia, os discursos “liberais” e “conservadores” de que a vida é assim mesmo, nem todo mundo é igual, a História é cruel. Quando a História nada tem a ver com isso; nós fazemos a História, os cruéis somos nós. Mas, e daí? A vida continua.

O “E daí?” chegou lá no alto, justamente no último patamar de onde se deve esperar algum tipo de ajuda. O que o mais desvalido pensará, vendo que o Estado que tem o dever de zelar por eles diz: “E daí?”.

Somos a cultura do “E daí?”, do cada um por si, da concorrência desleal, afinal, a concorrência pela renda é desigual, injusta e desumana. Mas, e daí. E a escolha, a seleção natural, dos sortudos e dos azarados. Quem mandou não fazer isso ou aquilo? Eu fiz por que não fez também?

Alguns dizem que teremos um novo normal, uma nova maneira de viver. Outros dirão “E daí?” eu sobrevivi, bola pra frente.

Nilson Lattari

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Crônicas e Contos

NILSON LATTARI é carioca e atualmente morando em Juiz de Fora (MG). Escritor e blogueiro no site www.nilsonlattari.com.br, vencedor duas vezes do Prêmio UFF de Literatura (2011 e 2014) e Prêmio Darcy Ribeiro (Ribeirão Preto 2014). Finalista em livro de contos no Prêmio SESC de Literatura 2013 e em romance no Prêmio Rio de Literatura 2016. Menções honrosas em crônicas, contos e poesias. Foi operador financeiro, mas lidar com números não é o mesmo que lidar com palavras. "Ambos levam ao infinito, porém, em veículos diferentes. As palavras, no entanto, são as únicas que podem se valer da imaginação para um universo inexato e sem explicação".

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