Saúde

Cuba disse não à prepotência

Netto
Ilustração: Netto

 

Com profunda indignação, estimados leitores e leitoras d’O Folha de Minas, constato a atitude descabida, prepotente e irresponsável do presidente eleito JB que, utilizando rede social (poderia ter convocado coletiva de imprensa), propagou o fim do Programa Mais Médicos após tentativa de intimar Cuba “a aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias”.

Que reação à estúpida atitude teria uma nação soberana, com identidade inquestionável construída numa revolução popular, que serve, com dignidade, o seu povo? A de contra-atacar. E Cuba nocauteou JB antes dele se engasgar com a fanfarronice de cowboy tupiniquim. Disse não.

Eu vi, estimados e estimadas leitores, o trabalho de excelência realizado por Cuba na área de saúde. Por alguns meses, morando em El Vedado, em Havana, quando o Brasil ainda não tinha relação diplomática com Cuba, no início dos anos 80, acompanhei missões de médicos nas áreas rurais, assistindo os campesinos. Fiz visitas frequentes à Universidad de la Habana, pois queria confirmar o avanço da qualidade do ensino, principalmente da saúde. Ouvia que, com o triunfo da revolução, jovens tinham que fazer a opção de ingressar na medicina, já que grande quantidade de profissionais tinha fugido do país com a queda de Fulgêncio Batista.

Estive visitando o Hospital Hermanos Ameijeiras e, lá, na primeira vez, lembrei que Fidel Castro, após a revolução, disse que “o futuro de Cuba teria que ser necessariamente um futuro de homens de pensamento”. Mais de meio século após isso, Cuba é um país de pesquisadores, especialistas e operários qualificados, que dispõe de uma das indústrias biotecnológicas mais importantes do mundo, com resultados comparáveis aos das chamadas grandes nações.

Além da excelência da qualidade na saúde, reconhecida por respeitáveis organismos do setor no mundo, como a OMS, Cuba privilegia de forma intransigente os princípios fundamentais da garantia de vida dos cidadãos. Posso dizer que conheci o outro lado do sistema político que prioriza a vida com dignidade, em contraponto do que vivemos no Brasil, onde contamos pessoas mortas de forma violenta, direito à saúde por meio de ação impetrada no Ministério Publico, além de educação, moradia e transporte coletivo em precárias condições.

Em resposta à intempérie do cowboy tupiniquim, dublê aprendiz do ator matador de índios John Wayne, o Ministério da Saúde Pública da República de Cuba expediu esclarecimentos onde afirma que “o presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, com referências diretas, depreciativas e ameaçando a presença de nossos médicos, disse e reiterou que vai modificar os termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito para a Organização Pan-Americana da Saúde e o que foi acordado por ela com Cuba, ao questionar a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa à revalidação do título e como única forma a contratação individual”.

Diz ainda que “nestes cinco anos de trabalho, cerca de 20 mil colaboradores cubanos atenderam 113,3 milhões de pacientes (113.359.000) em mais de 3.600 municípios, chegando a ser assistidos por eles um universo de 60 milhões de brasileiros, constituindo 80% de todos os médicos participantes do programa. Mais de 700 municípios tiveram um médico pela primeira vez na história. O trabalho dos médicos cubanos, em locais de extrema pobreza, nas favelas do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador (Bahia), nos 34 Distritos Especiais Indígenas, especialmente na Amazônia, foi amplamente reconhecido pelos governos federal, estaduais e municipais daquele país e pela sua população, que concedeu 95% de aceitação, segundo um estudo encomendado pelo Ministério da Saúde do Brasil à Universidade Federal de Minas Gerais”.

Afirma o Ministério da Saúde Pública da República de Cuba que “as mudanças anunciadas impõem condições inaceitáveis e descumprem as garantias acordadas desde o início do programa, que foram ratificadas em 2016, com a renegociação do Acordo de Cooperação entre a Organização Pan-Americana da Saúde e o Ministério da Saúde do Brasil e o Acordo de Cooperação entre a Organização Pan-Americana da Saúde e o Ministério da Saúde Pública de Cuba. Essas condições inadmissíveis impossibilitam a manutenção da presença dos profissionais cubanos no Programa. Portanto, perante esta triste realidade, o Ministério da Saúde Pública de Cuba tomou a decisão de não continuar participando do Programa Mais Médicos e, assim, foi comunicado ao diretor da Organização Pan-Americana da Saúde e aos líderes políticos brasileiros que fundaram e defenderam essa iniciativa”.

A nota conclui que “não é aceitável questionar a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio de suas famílias, prestam, atualmente, serviços em 67 países. Em 55 anos, 600.000 missões internacionalistas foram realizadas em 164 países, envolvendo mais de 400.000 trabalhadores da saúde, que em muitos casos cumpriram essa honrosa tarefa em mais de uma ocasião. Destaque para as façanhas da luta contra o Ebola na África, a cegueira na América Latina e no Caribe, a cólera no Haiti e a participação de 26 brigadas do Contingente Internacional de Médicos Especializados em Desastres e Grandes Epidemias ‘Henry Reeve’ no Paquistão, Indonésia, México, Equador, Peru, Chile e Venezuela, entre outros países.

Na esmagadora maioria das missões concluídas, as despesas foram assumidas pelo governo cubano. Da mesma forma, em Cuba, 35.613 profissionais de saúde de 138 países foram capacitados gratuitamente, como expressão de nossa solidariedade e vocação internacionalista.

Aos colaboradores lhes foi mantido, em todos os momentos, seu posto de trabalho e 100% do seu salário em Cuba, com todo o trabalho e garantias sociais, tal como aos outros funcionários do Sistema Nacional de Saúde.

A experiência do Programa Mais Médicos para o Brasil e a participação cubana demonstra que um programa de cooperação Sul-Sul pode ser estruturado, sob os auspícios da Organização Pan-Americana da Saúde para promover seus objetivos em nossa região. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e a Organização Mundial da Saúde qualificam-no como o principal exemplo de boas práticas na cooperação triangular e na implementação da Agenda 2030 com os seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Os povos da nossa América e do resto do mundo sabem que sempre poderão contar com a vocação humanista e solidária de nossos profissionais.

O povo brasileiro, que fez do programa Mais Médicos uma conquista social, que teve confiança desde o início nos médicos cubanos, aprecia suas virtudes e agradece o respeito, sensibilidade e profissionalismo com que eles o atenderam, e será capaz de entender sobre quem recai a responsabilidade que nossos médicos não possam continuar fornecendo sua contribuição de solidariedade naquele país.Havana, 14 de novembro de 2018”.

Bem, estimados e estimadas leitores d’O Folha de Minas, o público em geral, declaro que não tenho procuração do povo de Cuba para representá-lo na defesa de sua soberania. Sou uma testemunha da ordem que garante o progresso cubano, que tem a régua e o compasso nas mãos e segue “aprendendo e ensinando uma nova lição”. Meu testemunho se soma a de um dos filhos de Daniel Jardim de Grisolia, prefeito de Itabira/MG, que voltou à vida através da assistência médica cubana. O conheci na praça de alimentação do bairro Esplanada da Estação, onde me contou que sofreu diversas fraturas pelo corpo, consequência de acidente no qual morreram mulher e filhos. Peregrinou entre a vida e a morte, de norte a sul, leste a oeste, desenganado, numa UTI móvel, sem perspectivas de sequer voltar a andar. Foi então que lembrou o que um anjo havia previsto e, em Cuba, três anos depois, recuperou a condição plena de vida. Brindamos a emoção com uma pinga.

A questão da saúde no Brasil, meus compatriotas, infelizmente, com a saída dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos, será ainda mais calamitosa, nefasta, trágica. Quem escapar ao naufrágio político do ódio, da intolerância, da arrogância e da prepotência verá.

Recordo quando declamei o poema A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade, para Ana Elisa Córdoba, no Malecon (orla marítima de Habana), depois de alguns mojitos no La Bodeguita del Médio.  Ela pediu, por duas vezes, para repetir a estrofe onde o poeta diz:

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre,

fundem-se no mesmo impasse.

Que a luz no túnel brilhe, depois dos ásperos tempos e da agonia da noite, em saudação a obra Os subterrâneos da liberdade, de Jorge Amado.

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